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segunda-feira, 28 de novembro de 2016

Nasci para gostar de gostar

nasci para antever a luz
por detrás das nuvens mais escuras
para sondar o insondável
e perscrutar o que não é visível ao olhar
nasci para aprender a aprender
e descobrir que tudo está por descobrir
nasci para lutar em todos os momentos
pela liberdade e saboreá-la
com o insaciável desejo do fruto proibido
nasci para ser livre como um potro selvagem
que cavalga um mundo sem fronteiras
e sacode a mão que o quer subjugar
nasci para ser criança mãe e avó e novamente
criança na cristalina alegria dos risos gaiatos
no incansável jogo lúdico
do que se faz e desfaz e se volta a fazer
na fulgurante cumplicidade do amor
nos rarefeitos cumes do dever singular
e no espanto criador
de quem se perde e se acha
para  além de todos os limites

nasci para deixar que a vida
me aconteça livremente
não prevejo nem planeio
aprendo a aceitar o que é imutável
a contestar a guerra e as injustiças
a caminhar à beira do abismo
com a coragem solitária para
o transpor e conhecer o lado de lá

nasci para gostar de gostar

Maria Teresa Sampaio 
Claude Monet. Pôr do sol em Veneza








A rosa de Dali.

Esta é a rosa mais perfeita, de Salvador Dali, que escolhi para o meu aniversário.
Cumpre todos os requisitos:
- É apaixonante,
- É simultaneamente etérea.
- Não parece deste mundo;
- Paira acima de tudo, alegrias e tristezas.
- Nada parece afetá-la.
- Segue pelas nuvens rumo ao horizonte, onde tudo se relativiza.
- E ganha então um novo sentido mais espiritual.
Por isso gosto tanto desta rosa de Dali.

Salvador Dali

quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Um pouco de nada


Bom dia, amor.

Trago o sorriso da madrugada
preso nos lábios
para te dar.
Trago pétalas de uma saudade
na flor que busquei
para te dar.
Trago melodias de vento
enredadas nos cabelos
para te dar.
É pouco, eu sei,
mas, olha, trago-te ainda
o que apenas pressentes,
o lume do meu desejo,
o horizonte do meu amor,
o muito que sinto
e o imenso que sonho.

Bom dia, amor.

Toma este pouco de nada
em troca do infinito
que tu me dás.


Teresa Sampaio
 
Christian Schloe 


quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Subitamente


Aconteceste subitamente na neblina,
vieste como achado de espuma na praia-mar.
Dedilhaste no meu corpo
a música breve de uma guitarra
e bebeste nos meus lábios
a saliva salgada do amor.
Aquecemos a cal e a carne,
inundámos de seiva jovem
as raízes do dia
que morria nas nossas mãos.
Em silêncio ardemos
no lume excessivo
do verão a despedir-se
e, sem palavras,
possuímos o tempo
num abraço grande como
a nossa ânsia.

Teresa Sampaio
Passion by Irina Karkabi



domingo, 6 de novembro de 2016

As fontes

Um dia quebrarei todas as pontes
Que ligam o meu ser, vivo e total,
À agitação do mundo do irreal,
E calma subirei até às fontes.

Irei até às fontes onde mora
A plenitude, o límpido esplendor
Que me foi prometido em cada hora,
E na face incompleta do amor.

Irei beber a luz e o amanhecer,
Irei beber a voz dessa promessa
Que às vezes como um voo me atravessa,
E nela cumprirei todo o meu ser

*
Sophia de Mello Breyner Andresen


Chamo-te

Chamo-Te porque tudo está ainda no princípio
E suportar é o tempo mais comprido.
Peço-Te que venhas e me dês a liberdade,
Que um só de Teus olhares me purifique e acabe.
Há muitas coisas que não quero ver.
Peço-Te que sejas o presente.
Peço-Te que inundes tudo.
E que o Teu reino antes do tempo venha
E se derrame sobre a Terra
Em Primavera feroz precipitado.
*
Sophia de Mello Breyner Andresen

Ausência


Num deserto sem água
Numa noite sem lua
Num país sem nome
Ou numa terra nua
Por maior que seja o desespero
Nenhuma ausência é mais funda do que a tua.
*
Sophia de Mello Breyner Andresen
Sophia de Mello Breyner Andresen e Francisco Sousa Tavares, seu marido.

Com fúria e raiva


Com fúria e raiva acuso o demagogo
E o seu capitalismo das palavras
Pois é preciso saber que a palavra é sagrada
Que de longe muito longe um povo a trouxe
E nela pôs a sua alma confiada
De longe muito longe desde o início
O homem soube de si pela palavra
E nomeou a pedra a flor a água
E tudo emergiu porque ele disse
Com fúria e raiva acuso o demagogo
Que se promove à sombra da palavra
E da palavra faz poder e jogo
E transforma as palavras em moeda
Como se fez com o trigo e com a terra.
*
6 - 1974
Sophia de Mello Breyner Andresen

Observação : Lembrei-me, inevitavelmente, das eleições americanas. 

Dia de Sophia

Hoje é o dia de uma das nossas maiores poetas portuguesa de sempre: SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN nasceu há 97 anos na cidade do Porto.
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[n. Porto,6-11- 1919 – m. Lisboa, 2-7-2004]
«A sua infância e adolescência passaram-se entre o Porto e Lisboa, onde frequentou o curso de Filologia Clássica. Após o casamento com o advogado Francisco de Sousa Tavares, fixa-se em Lisboa, passando a dividir a sua actividade entre a poesia e a intervenção cívica contra a ditadura de Salazar, que então dominava o país. As duas actividades não são, no entanto, separáveis: se, por um lado, foi candidata pela Oposição Democrática nas eleições legislativas de 1969, sócia fundadora da Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos e, após a Revolução de Abril de 1974, deputada à Assembleia Constituinte pelo Partido Socialista, a poesia ergue-se também como uma voz da liberdade, especialmente em O Livro Sexto.
Contemporânea de Jorge de Sena, Eugénio de Andrade, Alexandre O’Neill, Tomaz Kim, José Blanc de Portugal, Ruy Cinatti, António Ramos Rosa, David Mourão-Ferreira, fez parte da geração de Cadernos de Poesia (1940-42) e colaborou também na Távola Redonda (1950-54) e na Árvore (1951-53), o que a identifica com uma prática poética que afirma um ideal de modernidade, mas que nessa afirmação valoriza acima de tudo a busca do mistério poético, aí, e só aí, se inscrevendo um sistemático trabalho de depuração formal. Sophia é um dos expoentes de uma poesia onde o culto das técnicas de expressão só em função daquela busca e sua simultânea celebração ganha sentido, nunca enquanto mera representação do real como acontecera com a geração precedente que deu corpo ao ideal neo-realista, nem como mero jogo de intuições poéticas imediatas, como o foi em grande parte a poesia surrealista que igualmente se afirmou por esses anos. Nesse sentido, esta é, no seu equilíbrio de conceitos e procedimentos, uma poesia naturalmente humana e por isso clássica no seu modo de ser moderna.
Profundamente mediterrânica na sua tonalidade, a linguagem poética de Sophia de Mello Breyner denota uma sólida cultura clássica, onde se inscreve a sua paixão pela cultura grega como referente quase sempre presente e onde a relação do signo com o mundo circundante é uma relação de transparência e luminosidade. O ritmo, a construção melódica é expressão desse equilíbrio como o é da tensão — que por isso deixa de o ser — entre a vocação pura, emocional, e o seu modo reflectido, contido, de se escrever. A inspiração poética confunde-se, por outro lado, em Sophia, com o registo e o canto das coisas lisas e essenciais, um registo de imanência, e isso lhe confere uma espécie de magia. Luz, verticalidade e magia estão, aliás, quase sempre presentes na obra de Sophia: quer na obra poética, quer na importante obra para crianças que, inicialmente destinada aos seus cinco filhos, rapidamente se transformou num clássico da literatura infantil em Portugal, marcando sucessivas gerações de jovens leitores com títulos como O Rapaz de Bronze, A Fada Oriana ou A Menina do Mar.
Sophia é ainda tradutora para português de Anunciação a Maria, de Claudel, "Purgatório” da Commedia de Dante (com prefácio do Prof. Vieira de Almeida), Hamlet e Muito Barulho por Nada, de Shakespeare, Medeia, de Eurípedes, e Ser Feliz e Um Amigo, de Leit Kristianson; e traduziu para francês poemas de Camões, Cesário Verde, Mário de Sá-Carneiro e Fernando Pessoa.»
In Centro de Documentação de Autores Portugueses, 07/2004
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PORQUE
Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão.
Porque os outros têm medo mas tu não.
Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.
Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.
Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.

Sophia de Mello Breyner Andresen