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sexta-feira, 18 de outubro de 2019

[Meu amor perdido, não te choro mais, que eu não te perdi!]


Meu amor perdido, não te choro mais, que eu não te perdi!
Porque posso perder-te na rua, mas não posso perder-te no ser,
Que o ser é o mesmo em ti e em mim.
 Muito é ausência, nada é perda!
Todos os mortos — gente, dias, desejos,
Amores, ódios, dores, alegrias —
Todos estão apenas em outro continente...
Chegará a vez de eu partir e ir vê-los.
De se reunir a família e os amantes e os amigos
Em abstracto, em real, em perfeito
Em definitivo e divino.
  
Reunir-me-ei em vida e morte
Aos sonhos que não realizei
Darei os beijos nunca dados,
Receberei os sorrisos, que me negaram,
Terei em forma de alegria as dores que tive...
  
Ah, comandante, quanto tarda ainda
A partida do transatlântico?
Faz tocar a banda de bordo —
Músicas alegres, banais, humanas, como a vida —
Faz partir, que eu quero partir...

Som do erguer do ferro, meu estertor
Quando é que por fim eu te ouvirei?
Fremir do costado pela pulsação das máquinas —
Meu coração no bater final convulso —,

[Toque de vigias, suspiros do porto?]
(...)
Lenços a acenarem-me do cais em que ficam...
Até mais tarde, até quando vierdes, até sempre!
Até o eterno em alegre Agora,
Até o (...) 

s.d.

Álvaro de Campos
  
In “A Partida”. Álvaro de Campos - Livro de Versos . Fernando Pessoa. (Edição crítica. Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes.) Lisboa: Estampa, 1993. 



Somos folhas breves


Somos folhas breves onde dormem 
aves de sombra e solidão. 
Somos só folhas e o seu rumor. 
Inseguros, incapazes de ser flor, 
até a brisa nos perturba e faz tremer. 
Por isso a cada gesto que fazemos 
Cada ave se transforma noutro ser.

Eugénio de Andrade

In "As mãos e os frutos". 1948. 



Sulcos


De que lado viste chegar 
o Outono? Por que janela
o deixaste entrar? És tu quem
canta em surdina, ou a luz
espessa das suas folhas?
Em que rio te despes para sonhar?
É comigo que voltas
a ter quinze anos e corres
contra o vento até te perderes
na curva da estrada?
A quem dás a mão e confias
um segredo? Diz-me,
diz-me, para que possa habitar
um a um os meus dias.

Eugénio de Andrade

  
In "Os sulcos da sede". 2001.






Aniversário de Nietsche




quarta-feira, 28 de agosto de 2019

A Marcha sobre Washington e o inesquecível discurso de Martin Luther King: "Eu tenho um sonho"


A 28 de agosto de 1963 realizou-se a célebre "Marcha sobre Washington", em prol da liberdade, de empregos, de mais segurança para os negros americanos, contra a discriminação racial. Esta manifestação pelos direitos civis, excedeu em número de participantes (brancos, negros, de todas as profissões e estudantes) tudo o que havia sido sonhado pelos seus organizadores. Num clima de enorme tensão social,  250 mil pessoas participaram ordeiramente na marcha e puderam ouvir um dos mais importantes  e incontornáveis discursos de sempre, da História americana, proferido pelo jovem reverendo batista, Martin Luther King, um incansável lutador pelos direitos humanos, pela não violência, que haveria de receber o Prémio Nobel da Paz, no ano seguinte (1964) e seria brutalmente assassinado em 1968, em Menphis. 
Peça de oratória única e memorável, magistralmente dito, praticamente de improviso, sem poupar a emoção, o discurso ficou universalmente conhecido, mais ainda, pela frase sincopadamente repetida, "I have a dream" (Eu tenho um sonho) e por outra "Let freedom ring" (Que a Liberdade ressoe).
O poder incontestado destas palavras proferidas por aquele que era o verdadeiro líder moral dos Estados Unidos, ecoou na multidão emocionada. Em 1964 e 1965, 
seriam sucessivamente aprovadas a Lei dos Direitos Civis e a Lei sobre o Direito de Votar. 
A América nunca mais seria a mesma. Algumas décadas depois, em 2009, seria eleito o primeiro Presidente afro-americano, Barack Obama.
(mts)


«EU  TENHO UM SONHO»

Há cem anos, um grande americano, sob cuja sombra simbólica nos encontramos, assinava a Proclamação da Independência. Essa lei fundamental foi como um raio de luz de esperança para milhões de escravos negros que tinham sido marcados a ferro nas chamas de uma vergonhosa injustiça. Veio como uma aurora feliz para terminar a longa noite do cativeiro. Mas, cem anos mais tarde, devemos enfrentar a realidade trágica de que o Negro ainda não é livre.

Cem anos mais tarde, a vida do Negro é ainda lamentavelmente dilacerada pelas algemas da segregação e pelas correntes da discriminação. Cem anos mais tarde, o Negro continua a viver numa ilha isolada de pobreza, no meio de um vasto oceano de prosperidade material. Cem anos mais tarde, o Negro ainda definha nas margens da sociedade americana, exilado na sua própria terra.

Por isso, encontramo-nos aqui hoje para dramaticamente mostrarmos esta extraordinária situação. Num certo sentido, viemos à capital do nosso país para descontar um cheque. Quando os arquitetos da nossa república escreveram as magníficas palavras da Constituição e da Declaração de Independência, estavam a assinar uma promissória de que cada cidadão americano se tornaria herdeiro.

Este documento era uma promessa de que todos os homens veriam garantidos os direitos inalienáveis à vida, à liberdade e à busca de felicidade. É óbvio que a América ainda hoje não pagou tal promissória no que concerne aos seus cidadãos de cor. Em vez de honrar este compromisso sagrado, a América deu ao Negro um cheque sem cobertura; um cheque que foi devolvido com a seguinte inscrição: "saldo insuficiente". Porém nós recusamo-nos a aceitar a ideia de que o banco da justiça esteja falido. Recusamo-nos a acreditar que não exista dinheiro suficiente nos grandes cofres de oportunidades deste país.

Por isso viemos aqui cobrar este cheque - um cheque que nos dará, quando o recebermos, as riquezas da liberdade e a segurança da justiça. Também viemos a este lugar sagrado para lembrar à América a clara urgência do agora. Não é o momento de nos  darmos alo luxo de adiar nem de tomar a pílula tranquilizante do gradualismo. Agora é tempo de tornar reais as promessas da Democracia. Agora é tempo de sairmos do vale escuro e desolado da segregação para o iluminado caminho da justiça racial. Agora é tempo de abrir as portas da oportunidade para todos os filhos de Deus. Agora é tempo de retirar o nosso país das areias movediças da injustiça racial para a rocha sólida da fraternidade.

Seria fatal para a nação não levar a sério a urgência do momento e subestimar a determinação do Negro. Este sufocante verão de legítimo descontentamento do Negro não passará até que chegue o revigorante outono da liberdade e igualdade. 1963 não é um fim, mas um começo. Aqueles que crêem que o Negro precisava só de desabafar, e que a partir de agora ficará sossegado, irão acordar sobressaltados se o País regressar à sua vida de sempre. Não haverá tranquilidade nem descanso na América até que o Negro tenha garantido todos os seus direitos de cidadania.

Os turbilhões da revolta continuarão a sacudir as fundações do nosso País até que desponte o luminoso dia da justiça. Existe algo, porém, que devo dizer ao meu povo que se encontra no caloroso limiar que conduz ao palácio da justiça. No percurso para ganharmos o nosso legítimo lugar não devemos ser culpados de actos errados. Não tentemos satisfazer a sede de liberdade bebendo da taça da amargura e do ódio.

Temos de conduzir a nossa luta sempre no nível elevado da dignidade e disciplina. Não devemos deixar que o nosso protesto realizado de uma forma criativa degenere em violência física. Teremos de nos erguer uma e outra vez às alturas majestosas para enfrentar a força física com a força da consciência.

Esta maravilhosa nova militância que envolveu a comunidade negra não nos deve levar a desconfiar de todas as pessoas brancas, pois muitos dos nossos irmãos brancos, como é claro pela sua presença aqui, hoje, estão conscientes de que os seus destinos estão ligados ao nosso destino, e que sua liberdade está intrinsecamente ligada à nossa liberdade.

Não podemos caminhar sozinhos. À medida que caminhamos, devemos assumir o compromisso de marcharmos em frente. Não podemos retroceder. Há quem pergunte aos defensores dos direitos civis: "Quando é que ficarão satisfeitos?" Não estaremos satisfeitos enquanto o Negro for vítima dos incontáveis horrores  da brutalidade policial. Não poderemos estar satisfeitos enquanto os nossos corpos, cansados das fadigas da viagem, não conseguirem ter acesso a um lugar de descanso nos motéis das estradas e nos hotéis das cidades. Não poderemos estar satisfeitos enquanto a mobilidade fundamental do Negro for passar de um gueto pequeno para um maior. Nunca poderemos estar satisfeitos enquanto um Negro no Mississipi não puder votar e um Negro em Nova Iorque achar que não há nada pelo qual valha a pena votar. Não, não, não estamos satisfeitos, e só ficaremos satisfeitos quando a justiça correr como a água e a rectidão como uma poderosa corrente.

Sei muito bem que alguns de vocês chegaram aqui após muitas dificuldades e tribulações. Alguns de vocês saíram recentemente de pequenas celas de prisão. Alguns de vocês vieram de áreas onde a busca de liberdade vos deixou marcas provocadas pelas tempestades da perseguição e sofrimentos provocados pelos ventos da brutalidade policial. Vocês são veteranos do sofrimento criativo. Continuem a trabalhar com a fé em que um sofrimento injusto é redentor.

Voltem para o Mississipi, voltem para o Alabama, voltem para a Carolina do Sul, voltem para a Geórgia, voltem para a Luisiana, voltem para as bairros de lata e para os guetos das nossas modernas cidades, sabendo que, de alguma forma, esta situação pode e será alterada. Não nos afundemos  no vale do desespero.

Digo-vos, hoje, meus amigos, que apesar das dificuldades e frustrações do momento, ainda tenho um sonho. É um sonho profundamente enraizado no sonho americano.

Tenho um sonho, que um dia esta nação levantar-se-á e viverá o verdadeiro significado da sua crença: "Consideramos estas verdades como evidentes por si mesmas, que todos os homens são criados iguais".

Tenho um sonho, que um dia nas montanhas rubras da Geórgia os filhos de antigos escravos e os filhos de antigos proprietários de escravos poderão sentar-se à mesa da fraternidade.

Tenho um sonho, que um dia o estado do Mississipi, um estado deserto, sufocado pelo calor da injustiça e da opressão, será transformado num oásis de liberdade e justiça.

Tenho um sonho, que os meus quatro filhos pequenos viverão um dia numa nação onde não serão julgados pela cor da sua pele, mas pela qualidade do seu caráter.

Tenho um sonho, hoje.

Tenho um sonho, que um dia o estado de Alabama, cujo governador actualmente  pronuncia palavras de recusa, seja transformado de forma a que pequenos rapazes  negros, e raparigas negras, possam dar-se as mãos com outros pequenos rapazes brancos, e raparigas brancas, caminhando juntos, lado a lado, como irmãos e irmãs.

Tenho um sonho, hoje.

Tenho um sonho, que um dia todo os vales serão elevados, todas as montanhas e encostas serão  niveladas, os lugares ásperos serão polidos, e os lugares tortuosos serão endireitados, e a glória do Senhor será revelada, e todos os seres a verão, conjuntamente.

Esta é nossa esperança. Esta é a fé com a qual regresso ao Sul. Com esta fé seremos capazes de retirar da montanha do desespero uma pedra de esperança. Com esta fé poderemos transformar as dissonantes discórdias de nossa nação numa bonita e harmoniosa sinfonia de fraternidade. Com esta fé poderemos trabalhar juntos, rezar juntos, lutar juntos, ir para a prisão juntos, ficarmos juntos em posição de sentido pela liberdade, sabendo que um dia seremos livres.

Esse será o dia em que todos os filhos de Deus poderão cantar com um novo significado: "O meu país é teu, doce terra de liberdade, de ti eu canto. Terra onde morreram os meus pais, terra do orgulho dos peregrinos, que de cada localidade ressoe a liberdade".

E se a América quiser ser uma grande nação isto tem que se tornar realidade. Que a liberdade ressoe então dos prodigiosos cabeços do Novo Hampshire. Que a liberdade ressoe das poderosas montanhas de Nova Iorque. Que a liberdade ressoe dos elevados Alleghenies da Pensilvania!

Que a liberdade ressoe dos cumes cobertos de neve das montanhas Rochosas do Colorado!

Que a liberdade ressoe dos picos curvos da Califórnia!

Mas não só isso; que a liberdade ressoe da Montanha de Pedra da Geórgia!

Que a liberdade ressoe da Montanha Lookout do Tennessee!

Que a liberdade ressoe de cada Montanha e de cada pequena elevação do Mississipi.

Que de cada localidade, a liberdade ressoe.

Quando permitirmos que a liberdade ressoe, quando a deixarmos ressoar em cada vila e em cada aldeia, em cada estado e em cada cidade, seremos capazes de apressar o dia em que todos os filhos de Deus, negros e brancos, judeus e gentios, protestantes e católicos, poderão dar-se as mãos e cantar as palavras da antiga canção negra: "Liberdade finalmente! Liberdade finalmente! Louvado seja Deus, Todo Poderoso, estamos livres, finalmente!"

quinta-feira, 18 de julho de 2019

Aniversário de Nelson Mandela


NELSON MANDELA

[África do Sul, 18 de Julho 1918 – 5 Dezembro 2013]

Tudo o que eu pudesse dizer em abono deste homem superior, que escolheu a tolerância quando teria sido tão fácil optar pelos caminhos do ódio, após a libertação do cárcere onde passou grande parte da sua vida (27 anos) seria escasso e soar-me-ia sempre a pouco. Chamei-lhe homem superior no sentido da sabedoria que ele próprio adquiriu nos bons e nos maus momentos da sua vida e da luta do seu povo, porque, como disse, “uma boa cabeça e um bom coração formam sempre uma combinação formidável.” Este homem foi capaz de se dominar e superar, porque só ele era o “capitão” da sua alma.
Ele foi o líder único que promoveu a coragem onde havia medo, o acordo onde existia conflito.

Ele soube inspirar esperança onde havia tanto desespero e revolta, legítimos, contra o racismo e a opressão.
Ele foi o homem que corporizou a luta contra o mais desumano e injusto sistema político ‒ o apartheid.
Ele sabiamente conduziu o seu povo à liberdade, tendo dele recebido a maior prova de confiança, que poderia esperar, ao ser investido no cargo supremo de primeiro Presidente da África do Sul livre e democrática.
Finalmente, este foi o homem que o mundo respeitou e que a Academia Sueca reconheceu como o justo vencedor do Prémio Nobel da Paz de 1993.

Para mim Nelson Mandela foi e continua a ser o maior líder político e moral do nosso tempo. E, como as suas palavras nunca foram ocas nem vãs, nada melhor do que transcrever alguns dos seus pensamentos, para que as novas gerações que não o conheceram saibam que, mesmo em tempos como os que vivemos, onde os valores e a ética parece estar ausentes, o exemplo de Nelson Mandela continua a ser como um farol na noite escura.

"Os ideais que acalentamos, os nossos sonhos mais íntimos e as nossas esperanças mais ardentes podem não ser concretizados no nosso tempo de vida. Mas isso não é o mais importante. A consciência de termos cumprido o nosso dever e de termos estado à altura das expectativas dos nossos contemporâneos é em si mesma uma experiência gratificante e uma conquista magnífica"

"Quando penso no passado, no tipo de coisas que me fizeram, sinto-me furioso, mas, mais uma vez, isso é apenas um sentimento. O cérebro sempre domina e diz-me: tens um tempo limitado de estadia na Terra e deves tentar usar esse período para transformar o teu país naquilo que desejas.”

“A educação é o grande motor do desenvolvimento pessoal. É através dela que a filha de um camponês se torna médica, que o filho de um mineiro pode chegar a chefe de mina, que um filho de trabalhadores rurais pode chegar a presidente de uma grande nação.”
“Nenhum poder na Terra é capaz de deter um povo oprimido, determinado a conquistar sua liberdade.”

No final da sua vida, Nelson Mandela pôde, por fim, repousar. Simplesmente cumpriu o que disse:

“A morte é inevitável. Quando um homem fez o que considera seu dever para com seu povo e seu país, pode descansar em paz.”

(mts)



quarta-feira, 22 de maio de 2019

CHICO BUARQUE, VENCEDOR DO PRÉMIO CAMÕES 2019.



APROVEITANDO O ENSEJO...

Sonhar
Mais um sonho impossível
Lutar
Quando é fácil ceder
Vencer o inimigo invencível
Negar quando a regra é vender
Sofrer a tortura implacável
Romper a incabível prisão
Voar num limite improvável
Tocar o inacessível chão
É minha lei, é minha questão
Virar esse mundo
Cravar esse chão
Não me importa saber
Se é terrível demais
Quantas guerras terei que vencer
Por um pouco de paz
E amanhã, se esse chão que eu beijei
For meu leito e perdão
Vou saber que valeu delirar
E morrer de paixão
E assim, seja lá como for
Vai ter fim a infinita aflição
E o mundo vai ver uma flor
Brotar do impossível chão
~~
Chico Buarque
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DE TODAS AS MANEIRAS

De todas as maneiras
Que há de amar
Nós já nos amamos
Com todas as palavras feitas pra sangrar
Já nos cortamos
Agora já passa da hora
Tá linddo lá fora
Larga a minha mão
Solta as unhas do meu coraçãao
Que ele está apressado
E desanda a bater desvairado
Quando entra o verão
De todas as maneiras que há de amar
Já nos machucamos
Com todas as palavras feitas pra humilhar
Nos afagamos
Agora já passa da hora
Tá lindo lá fora
Larga a minha mão
Solta as unhas do meu coração
Que ele está apressado
E desanda a bater desvairado
Quando entra o verão
~~
Chico Buarque
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CONSTRUÇÃO
Amou daquela vez como se fosse a última
Beijou sua mulher como se fosse a última
E cada filho seu como se fosse o único
E atravessou a rua com seu passo tímido
Subiu a construção como se fosse máquina
Ergueu no patamar quatro paredes sólidas
Tijolo com tijolo num desenho mágico
Seus olhos embotados de cimento e lágrima
Sentou pra descansar como se fosse sábado
Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe
Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago
Dançou e gargalhou como se ouvisse música
E tropeçou no céu como se fosse um bêbado
E flutuou no ar como se fosse um pássaro
E se acbou no chão feito um pacote flácido
Agonizou no meio do passeio público
Morreu na contramão atrapalhando o tráfego
Amou daquela vez como se fosse o último
Beijou sua mulher como se fosse a única
E cada filho seu como se fosse o pródigo
E atravessou a rua com seu passo bêbado
Subiu a construção como se fosse sólido
Ergueu no patamar quatro paredes mágicas
Tijolo com tijolo num desenho lógico
Seus olhos embotados de cimento e tráfego
Sentou pra descansar como se fosse um príncipe
Comeu feijão com arroz como se fosse máquina
Dançou e gargalhou como se fosse o próximo
E tropeçou no céu como se ouvisse música
E flutuou no ar como se fosse sábado
E se acabou no chão feito um pacote tímido
Agonizou no meio do passeio náufrago
Morreu na contramão atrapalhando o público
Amou daquela vez como se fosse máquina
Beijou sua mulher como se fosse lógico
Ergueu no patamar quatro paredes flácidas
Sentou pra descansar como se fosse um pássaro
E flutuou no ar como se fosse um príncipe
E se acabou no chão feito um pacote bêbado
Morreu na contramão atrapalhando o sábado
~~
Chico Buarque
..........................................................................
APESAR DE VOCÊ

Hoje você é quem manda
Falou, tá falado
Não tem discussão, não
A minha gente hoje anda
Falando de lado
E olhando pro chão, viu
Você que inventou esse estado
E inventou de inventar
Toda a escuridão
Você que inventou o pecado
Esqueceu-se de inventar
O perdão
Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Eu pergunto a você
Onde vai se esconder
Da enorme euforia
Como vai proibir
Quando o galo insistir
Em cantar
Água nova brotando
E a gente se amando
Sem parar
Quando chegar o momento
Esse meu sofrimento
Vou cobrar com juros, juro
Todo esse amor reprimido
Esse grito contido
Este samba no escuro
Você que inventou a tristeza
Ora, tenha a fineza
De desinventar
Você vai pagar e é dobrado
Cada lágrima rolada
Nesse meu penar
Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Inda pago pra ver
O jardim florescer
Qual você não queria
Você vai se amargar
Vendo o dia raiar
Sem lhe pedir licença
E eu vou morrer de rir
Que esse dia há de vir
Antes do que você pensa
Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Você vai ter que ver
A manhã renascer
E esbanjar poesia
Como vai se explicar
Vendo o céu clarear
De repente, impunemente
Como vai abafar
Nosso coro a cantar
Na sua frente
Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Você vai se dar mal
Etc. e tal
Lá lá lá lá laia
~~
Chico Buarque
...................................................
Francisco Buarque de Hollanda, mais conhecido por Chico Buarque, nasceu a 19 Junho de 1944  no Rio de Janeiro, Brasil. Escritor, poeta e dramaturgo,  tem sido sempre um lutador incansável pela democracia e pela liberdade. Como músico é considerado um dos nomes maiores  da música popular brasileira.
Como ele cantou uma vez, a propósito da nossa revolução de Abril: 
"Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar"
Muito navegámos, desde então, mas o que o que nos une é a língua portuguesa. É o nosso traço de união, a matriz das palavras e dos sonhos que acalentamos..
Para ti, Chico, guardámos os cravos de abril e o cheirinho a alecrim. Ainda estão viçosos.
Parabéns.
mts