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segunda-feira, 5 de outubro de 2015

VIVA A REPÚBLICA PORTUGUESA

Este é o dia que os senhores do governo
querem retirar dos livros, apagar,
tapar,  esquecer,
censurar, como antigamente.
Este é o dia que um presidente
sem honra nem vergonha
quer silenciar.
Mas nós não vamos deixar que isso aconteça.
Sejamos dignos do povo que
sem medo, implantou a República.

VIVA O 5 DE OUTUBRO DE 1910
VIVA A REPÚBLICA PORTUGUESA.

5 de outubro de 2015
mts



RESISTIR. RESISTIR.RESISTIR.

Nada de submissões cómodas.
Nada de desalento.
Nada de virar costas para não sentir.
O caminho afigura-se lento e pedregoso.
Só existe uma atitude:

Resistir- Resistir. Resistir.


5 de outubro de 2015 (o feriado da implantação da República, que nos foi roubado)


mts

sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Legislativas 2015


Vou votar no domingo,
quer chova ou troveje.
Hei de votar até ao fim da minha vida
nem que me levem de rojo.


As sondagens, verdadeiras
ou fabricadas a belo prazer
deixam-me à beira do desencanto,
da incredulidade e da raiva também.


Como, mas como, vou eu aguentar
mais quatro anos esta coligação,
a austeridade, os números mascarados,
os cortes sem piedade,
o desespero de ver os jovens
no desemprego ou na emigração,
os idosos reduzidos ao limiar da pobreza,
o trabalho dos funcionários públicos
desonrado pelo massacre dos
discursos dos governantes,
que encontra eco em parte da população?


Como vou eu aguentar isto
e o que mais vier,
depois das emoções livres de abril?
Como vou olhar para a angústia
contida do meu filho a querer
acreditar em novo emprego?
Como vou suster as lágrimas
que tentam rebentar o dique
quando penso no futuro deste meu país,
dos meus filhos e das minhas netas?


Nãio, não desesperei.
Preparo-me para o pior,
iluminada pela ténue luz
da esperança e de uma surpresa feliz
no final da contagem dos votos.


Não pensem eles, presidente incluído,
que me venceram.
Se a ditadura não conseguiu,
não eram agora estes falsários
que ajoelhados perante a Alemanha,
me enfraqueciam a vontade
e me roubavam o que me resta:
a coragem de lutar pela
igualdade de direitos e oportunidades,
por uma justa repartição da riqueza,
por um ensino e saúde para todos
e pela DEMOCRACIA
contra gente da laia deles.


2 de outubro de 2015

mts




terça-feira, 29 de setembro de 2015

QUADROS COM HISTÓRIA: “AT ETERNITY’S GATE”, DE VAN GOGH

Dois meses antes da morte, Van Gogh terminou a obra “No limiar da Eternidade”, nela expressando a angústia que o assoberbava e a luta de contrários em que se digladiava, até ao suicídio. Como tinha sido estudioso da Bíblia e pregador, transmitiu em toda a sua obra e especialmente neste trabalho a simbologia religiosa da sua atormentada vida. Naturalmente, que se pode observar apenas o que é visível diretamente ao olhar. Contudo, a simbologia está lá, impõe-se e é determinante para a leitura ou explicação do quadro.
Este trabalho, terminado em maio de1890, num asilo em Saint-Rémy de Provence, onde o artista convalescia de uma severa recaída da sua saúde, é, talvez, o mais simbólico e espiritual do conjunto da sua obra. Teve como ponto de partida uma litografia, e por base desenhos a lápis, estudos, que — sabemos hoje, através de uma carta que o pintor escreveu ao irmão e único amigo, Theo — tiveram como inspiração um pensionista, veterano de guerra.

Van Gogh traçou, então, um velho, calvo, vestindo um fato inteiro de trabalhador, em bombazina azul, com os cotovelos cravados nas pernas e as mãos, enegrecidas pelo trabalho,  enclavinhadas, ocultando completamente o rosto. Quando escreveu ao irmão, disse-lhe: «penso que um pintor tem o dever de tentar transmitir as ideias no seu trabalho». E acrescentou que isso está para além de toda a teologia.
Van Gogh acreditava que a existência de Deus e a eternidade deviam transparecer na pintura daquele idoso, porque os mais pobres lenhadores, agricultores ou mineiros podiam ter, conforme escreveu, momentos em que se sentissem perto do “lar eterno”.
O artista tinha experimentado a miséria dos mineiros quando fora missionário numa região de minas de carvão belga, tendo decidido passar radicalmente pelas mesmas dificuldades e dormir na palha de uma cabana. Aspirava a ser um artista ao serviço de Deus. Por isso não é estranho, que a própria depressão e estados mentais extremos, para além das crenças religiosas, influenciassem de forma explícita a sua obra.
Em “No Limiar da Eternidade” os símbolos religiosos estão presentes no todo. A coloração azul, sugerindo a depressão e a angústia, mas também a sabedoria, predomina no quadro. Dela se veste o ancião, que é a figura central da obra. A seus pés, a lareira, em que os toros de madeira simbolizam, tal como as tábuas do chão e a cadeira, o sacrifício de Cristo na cruz. O fogo é a purificação  e a possibilidade de ascensão até ao absoluto.

As mãos, enegrecidas pelo trabalho pesado, bem como a posição do corpo, ligeiramente inclinado, revelam uma postura que não é só desespero mas também humildade. A cabeça, onde rareiam os cabelos, exprime a solidão da velhice e a proximidade da morte, que não é, contudo, o fim. Bastaria observar a pintura nestes termos, se não fosse a expressão em inglês com que o próprio autor titulou o seu trabalho: At Eternity's Gate”.

É o título que muda radicalmente o sentido da obra. Já não basta, então, ver um pobre velho desesperado, atravessando um momento de dor e profunda tristeza.
A própria vida aparece como uma hipótese de redenção, que se cumpre na eternidade. 

29 de setembro de 2015
mts

At Eternity's Gate

terça-feira, 22 de setembro de 2015

domingo, 20 de setembro de 2015

Aniversário de Ricardo Reis

O DIA DE HOJE É INTEIRAMENTE DEDICADO A RICARDO REIS, PORQUE O SEU ANIVERSÁRIO, SEGUNDO FERNANDO PESSOA, QUE LHE TRAÇOU A “VIDA” E A “OBRA”, OCORREU EM 19 DE SETEMBRO DE 1988, UM ANO ANTES DO NASCIMENTO DO SEU CRIADOR..

Na sua Carta a Adolfo Casais Monteiro - 13 Jan. 1935, Pessoa, ao explicar a origem do “heteronimismo”, diz que “aí por 1912, salvo erro (que nunca pode ser grande), veio-me à ideia escrever uns poemas de índole pagã.” […] “Esbocei umas coisas em verso irregular (não no estilo Álvaro de Campos, mas num estilo de meia regularidade), e abandonei o caso. Esboçara-se-me, contudo, numa penumbra mal urdida, um vago retrato da pessoa que estava a fazer aquilo. (Tinha nascido, sem que eu soubesse, o Ricardo Reis)”[…]
“Num dia em que finalmente desistira — foi em 8 de Março de 1914 — acerquei-me de uma cómoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim.” 
“Aparecido Alberto Caeiro, tratei logo de lhe descobrir — instintiva e subconscientemente — uns discípulos. Arranquei do seu falso paganismo o Ricardo Reis latente, descobri-lhe o nome, e ajustei-o a si mesmo, porque nessa altura já o via. “[…]
“Eu vejo diante de mim, no espaço incolor mas real do sonho, as caras, os gestos de Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos. Construi-lhes as idades e as vidas. Ricardo Reis nasceu em 1887 (não me lembro do dia e mês, mas tenho-os algures), no Porto, é médico e está presentemente no Brasil.” […]

“Caeiro era de estatura média, e, embora realmente frágil (morreu tuberculoso), não parecia tão frágil como era. Ricardo Reis é um pouco, mas muito pouco, mais baixo, mais forte, mas seco. “[…]
“Ricardo Reis, educado num colégio de jesuítas, é, como disse, médico; vive no Brasil desde 1919, pois se expatriou espontaneamente por ser monárquico. É um latinista por educação alheia, e um semi-helenista por educação própria.”[…]
“Como escrevo em nome desses três?... Caeiro por pura e inesperada inspiração, sem saber ou sequer calcular que iria escrever. Ricardo Reis, depois de uma deliberação abstracta, que subitamente se concretiza numa ode.” […]
“O difícil para mim é escrever a prosa de Reis — ainda inédita”[…]


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Fernando Pessoa


Da “ Carta a Adolfo Casais Monteiro - 13 Jan. 1935”. 


In Cartas. Fernando Pessoa. (Richard Zenith, ed.) Lisboa, . Lisboa: Assírio & Alvim, 2001
Imagem: Carta Astral de Ricardo Reis traçada pelo seu criador, Fernando Pessoa.

                    Imagem: Carta astrológica de Ricardo Reis traçada pelo seu criador, Fernando Pessoa.


ASPECTOS

«Prefácio geral».
1. Alberto Caeiro (1889-1915) — «O Guardador de Rebanhos» e outros poemas e fragmentos.
2. Ricardo Reis: «Odes».
3. António Mora: «Alberto Caeiro e a renovação do paganismo».
4. Álvaro de Campos: «Arco de Triunfo», Poemas.
5. Vicente Guedes: «Livro do Desassossego».

A atitude que deveis tomar para com estes livros publicados é a de quem não tivesse dado esta explicação, e os houvesse lido, tendo-os comprado, um a um, de cima das mesas de uma livraria. Outra não deve ser a condição mental de quem lê. Quando ledes Hamlet, não começais por estabelecer bem no vosso espírito que aquele enredo nunca foi real. Envenenaríeis com isso o vosso próprio prazer, que nessa leitura buscais. Quem lê deixa de viver. Fazei agora por que o façais. Deixai de viver, e lede. O que é a vida?
Mas aqui, mais intensamente que no caso da obra dramática de um poeta, tendes que contar com o relevo real do autor suposto. Não vos assiste o direito de acreditar na minha explicação. Deveis supor, logo ela lida, que menti; que ides ler obras de diversos poetas, ou de escritores diversos, e que através delas podeis colher emoções ou ensinamentos deles, em que eu, salvo como publicador, não estou nem colaboro. Quem vos diz que esta atitude não seja, no fim, a mais justamente conforme com a ignorada realidade das coisas?
Na minha obra pessoal coisas haverá que mostrem semelhança com o que há nestas obras. Não vos admireis. São legítimas influências literárias — ou minhas neles, ou deles em mim. Não há semelhança ou coexistência de personalidades.
Cada personalidade dessas — reparai — é perfeitamente una consigo própria"[...]

Finjo? Não finjo. Se quisesse fingir, para que escreveria isto? Estas coisas passaram-se, garanto; onde se passaram não sei, mas foi tanto quanto neste mundo qualquer coisa se passa, em casas reais, cujas janelas abrem sobre paisagens realmente visíveis. Nunca lá estive — mas acaso sou eu quem escreve?
Na vossa vida prática, cheia de coisas impossíveis, e que nunca podiam ter acontecido, na vossa vida de sentimento, doméstica ou própria, cheia de coisas de emoção que nunca se sentiram neste mundo, há acaso realidades tão presentes como estas, que talvez julgais indefinitivas? Ah, as sombras sois vós e as vossas sensações. A realidade, sendo verdadeira, é assim como me a escreveram estes, e como estes, que escreveram, foram.
Não me digais que sou médium de espíritos estranhos à terra. Com a terra me quero, e com o seu âmbito azul. O horizonte inclui quanto eu incluo; o resto são os maus sonhos que cada um tem a sós consigo.

Isto indica bem que a ordem da publicação deve ser a seguinte: (1) Caeiro, completo; (2) Ricardo Reis, vários livros das Odes, (3) Notas para a Recordação (pois nelas se não fala do próprio Campos), (4) um livro de Álvaro de Campos, (5) a discussão em família.
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s.d.
Fernando Pessoa

In Fernando Pessoa et le Drame Symboliste: Héritage et création. Maria Teresa Rita Lopes. Paris: F. C. Gulbenkian, 1977. - 501.

       
Imagem: Assinatura que Fernando Pessoa traçou para a atribuir a Ricardo Reis


[CONTROVÉRSIA ENTRE ÁLVARO DE CAMPOS E RICARDO REIS]

[Cito apenas a parte de Ricardo Reis, porque é dele que hoje se trata]

"Ricardo Reis:
Diz Campos que a poesia é uma prosa em que o ritmo é artificial. Considera a poesia como uma prosa que envolve música, donde o artifício. Eu, porém, antes diria que a poesia é uma música que se faz com ideias, e por isso com palavras. Considerai que será o fazerdes música com ideias, em vez de com emoções.
Com emoções fareis só música. Com emoções que caminham para as ideias, que se agregam ideias para se definir, fareis o canto. Com ideias só, contendo tão somente [?] o que de emoção há necessariamente em todas as ideias, fareis poesia. E assim o canto é a forma primitiva da poesia, porque é o caminho para ela [var.: não é a primeira forma da poesia, senão o caminho para ela].
Quanto mais fria a poesia, mais verdadeira. A emoção não deve entrar na poesia senão como elemento dispositivo do ritmo, que é a sobrevivência longínqua da música no verso. E esse ritmo, quando é perfeito, deve antes surgir da ideia que da palavra. Uma ideia perfeitamente concebida é rítmica em si mesma; as palavras em que perfeitamente se diga não têm poder para a apoucar. Podem ser duras e frias: não pesa — são as únicas e por isso as melhores. E, sendo as melhores, são as mais belas.
De nada serve o simples ritmo das palavras se não contém ideias. Não há nomes belos, senão pela evocação que os torna nomes. Embalar-se alguém com os nomes próprios de Milton é justo se se conhece o que exprimem, absurdo se se ignora, não havendo mais que um sono do entendimento, de que as palavras são o torpor."

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9-4-1930
Fernando Pessoa

In Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1996.



«NOTAS PARA A RECORDAÇÃO DO MEU MESTRE CAEIRO»

(1930 - 1932) [Fragmento]

[...] O meu mestre Caeiro não era um pagão: era o paganismo. O Ricardo Reis é um pagão, o António Mora é um pagão, eu sou um pagão; o próprio Fernando Pessoa seria um pagão, se não fosse um novelo embrulhado para o lado de dentro. Mas o Ricardo Reis é um pagão por carácter, o António Mora é um pagão por inteligência, eu sou um pagão por revolta, isto é, por temperamento.[...]
*
"Há frases repentinas, profundas porque vêm do profundo, que definem um homem, ou, antes, com que um homem se define, sem definição. Não me esquece aquela em que Ricardo Reis uma vez se me definiu. Falava-se de mentir, e ele disse: «Abomino a mentira, porque é uma inexactidão». Todo o Ricardo Reis — passado, presente e futuro — está nisto."

[...]" As ideias organicamente ocultas na expressão poética do meu mestre Caeiro tentaram definir-se, com maior ou menor felicidade lógica, em certas teorias do Ricardo Reis, em certas teorias minhas, e no sistema filosófico - esse perfeitamente definido - do António Mora."
*
[... ]"Propriamente falando, Reis, Mora e eu somos três interpretações orgânicas de Caeiro. Reis e eu, que somos fundamentalmente embora diversamente poetas, interpretamos ainda com sujidades do sentimento"

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Álvaro de Campos

In: Obra Essencial de Fernando Pessoa. Prosa Publicada em Vida. Edição Richard Zenith, Assírio & Alvim, Abril 2007



«NOTAS PARA A RECORDAÇÃO DO MEU MESTRE CAEIRO»
(1930 - 1932) [Fragmento. Continuação do anterior]


[...] " Propriamente falando, Reis, Mora e eu somos três interpretações orgânicas de Caeiro. Reis e eu, que somos fundamentalmente embora diversamente poetas, interpretamos ainda com sujidades do sentimento. Mora, puramente intelectual, interpreta com a razão; se tem sentimento, ou temperamento, anda disfarçado.
O conceito da vida, formado por Ricardo Reis, vê-se muito claramente nas suas odes, pois, quaisquer que sejam os seus defeitos, o Reis é sempre claro. Esse conceito da vida é absolutamente nenhum, ao contrário do de Caeiro, que também é nenhum, mas às avessas. Para Ricardo Reis, nada se pode saber do universo, excepto que nos foi dado como real um universo material. Sem necessariamente aceitarmos como real esse universo, temos que o aceitar como tal, pois não nos foi dado outro. Temos que viver nesse universo, sem metafísica, sem moral, sem sociologia nem política. Conformemo-nos com esse universo externo, o único que temos, assim como nos conformaríamos com o poder absoluto de um rei, sem discutir se é bom ou mau, mas simplesmente porque é o que é. Reduzamos a nossa acção ao mínimo, fechando-nos quanto possível nos instintos que nos foram dados, e usando-os de modo a produzir o menos desconforto para nós e para os outros, pois tem igual direito a não ter desconforto. Moral negativa, mas clara. Comamos, bebamos e amemos (sem nos prender sentimentalmente à comida, à bebida e ao amor, pois isso traria mais tarde elementos de desconforto); a vida é um dia, e a noite é certa; não façamos a ninguém nem bem nem mal, pois não sabemos o que é bem ou mal, e nem sequer sabemos se fazemos um quando supomos fazer o outro, a verdade, se existe, é com os Deuses, ou seja com as forças que formaram ou criaram, ou governam, o mundo - forças que, como na sua acção violam todas as nossas ideias do que é moral e todas as nossas ideias do que é imoral, estão patentemente além ou fora de qualquer conceito do bem ou do mal, nada havendo a esperar delas para nosso bem ou até para mal nosso. Nem crença na verdade, nem crença na mentira; nem optimismo nem pessimismo. Nada: a paisagem, um copo de vinho, um pouco de amor sem amor, e a vaga tristeza de nada compreender e de ter que perder o pouco que nos é dado. Tal é a filosofia de Ricardo Reis. É a de Caeiro endurecida, falsificada pela estilização. Mas é absolutamente a de Caeiro, de outro modo: o aspecto côncavo daquele mesmo arco de que a de Caeiro é o aspecto convexo, o fechar-se sobre si mesmo daquilo que em Caeiro está virado para o Infinito - sim, para o mesmo infinito que nega.
É isto - este conceito tão fundamente negativo das coisas - que dá à poesia de Ricardo Reis aquela dureza, aquela frieza, que ninguém negará que tem, por mais que a admire; e quem a admira - pouca gente - é por essa mesma frieza, aliás, que a admira. Nisto, de resto, Caeiro e Reis são iguais, com a diferença que Caeiro tem frieza sem dureza; que Caeiro, que é a infância filosófica da atitude de Reis, tem a frieza de uma estátua ou de um píncaro nevado, e Reis tem a frieza de um belo túmulo ou de um maravilhoso rochedo sem sol nem onde haver musgos. E é por isto que, sendo a poesia de Reis rigorosamente clássica na forma, é totalmente destituída de vibração - mais ainda que a de Horácio, apesar do maior conteúdo emotivo e intelectual. A tal ponto é intelectual, e portanto fria, a poesia de Reis, que quem não compreender um poema dele (o que facilmente sucede, dada a excessiva compressão) não lhe apreende o ritmo." [...]

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Álvaro de Campos
In: Obra Essencial de Fernando Pessoa. Prosa Publicada em Vida. Edição Richard Zenith, Assírio & Alvim, Abril 2007


             
                                                  Imagem: Ricardo Reis por Sara Pereira

«NOTAS PARA A RECORDAÇÃO DO MEU MESTRE CAEIRO»
(1930 - 1932) [Fragmento. Conclusão do anterior]


"O Reis é um intelectual, com o mínimo de sensibilidade de que um intelectual precisa para que a sua inteligência não seja simplesmente matemática, com o mínimo do que ente humano precisa para se poder verificar pelo termómetro que não está morto."[...]
"Reis deriva a sua alma daquele outro verso, que Caeiro se esqueceu de escrever, «as minhas sensações são todas pensamentos».[...]
" O Ricardo Reis era um pagão latente, desentendido da vida moderna e desentendido daquela vida antiga, onde deveria ter nascido - desentendido da vida moderna porque a sua inteligência era de tipo e qualidade diferente; desentendido da vida antiga porque a não podia sentir, pois se não sente o que não está aqui."[...]
". Antes de conhecer Caeiro, Ricardo Reis não escrevera um único verso, e quando conheceu Caeiro tinha já vinte e cinco anos. Desde que conheceu Caeiro, e lhe ouviu o Guardador de Rebanhos, Ricardo Reis começou a saber que era organicamente poeta. Dizem alguns fisiologistas que é possível a mudança de sexo. Não sei se é verdade, porque não sei se alguma coisa é «verdade». Mas o certo é que Ricardo Reis deixou de ser mulher para ser homem, ou deixou de ser homem para ser mulher - como se preferir - quando teve esse contacto com Caeiro. "
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Álvaro de Campos

In: Obra Essencial de Fernando Pessoa. Prosa Publicada em Vida. Edição Richard Zenith, Assírio & Alvim, Abril 2007


[NÃO SEM LEI MAS SEGUNDO IGNOTA LEI]

Não sem lei, mas segundo ignota leu 
Entre os homens o fado distribui 
O bem e o mal estar
Fortuna e glória, danos e perigos.

Bem ou mal, não terás o que mereces. 
Querem os deuses a isto obrigar-te [?]. 
Nem castigo ou prémio 
Speres, desprezes, temas ou precises.

Porque até aos deuses toda a acção é clara 
E é boa ou má, digna de homem ou deus,
Porque o fado não tem 
Leis nossas com que reja a sua lei.

Quem é rei hoje, amanhã scravo cruza 
Com o scravo de hoje que amanhã é rei. 
Sem razão um caiu, 
Sem causa nele o outro ascenderá.

Não em nós, mas dos deuses no capricho 
E nas sombras pra além do seu domínio 
Está o que somos, e temos, 
A vida e a morte do que somos nós.

Se te apraz mereceres, que te apraza 
Por mereceres, não porque te o Fado 
Dê o prémio ou a paga 
De com constância haveres merecido.

Dúbia é a vida, inconstante o que a governa. 
O que esperamos nem sempre acontece 
Nem nos falece sempre, 
Nem há com que a alma uma ou outra coisa spere.

Torna teu coração digno dos deuses 
E deixa a vida incerta ser quem seja. 
O que te acontecer 
Aceita. Os deuses nunca se revoltam.

Nas mãos inevitáveis do destino 
A roda rápida soterra hoje 
Quem ontem viu o céu 
Do transitório alto do seu giro.

[?] - palavra de leitura duvidosa

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17 - 11 - 1918
Ricardo Reis

In Poesia , Assírio & Alvim, ed. Manuela Parreira da Silva, 2000

                                                 Imagem: O Círculo Mágico da Vida

[PARA SER GRANDE SÊ INTEIRO]

Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui. 
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és 
No mínimo que fazes. 
Assim em cada lago a Lua toda 
Brilha, porque alta vive.


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14 - 2 - 1933
Ricardo Reis

In Poesia , Assírio & Alvim, ed. Manuela Parreira da Silva, 2000

                                                               Imagem:Google


19 de setembro de 2015
mts

sexta-feira, 11 de setembro de 2015

O 11 de setembro de 1973 no Chile.

Hoje, 11 de setembro de 2014, não posso deixar de assinalar este dia em que ocorreu o golpe de Estado no Chile, (11 de setembro 1973) levado a cabo por PInochet, contra o presidente, democraticamente eleito, Salvador Allende.
O número de vítimas ascendeu a cerca de 40.000,  tendo existido 30.00 prisioneiros políticos, submetidos às mais desumanas torturas.
2500 estudantes foram expulsos das escolas e 20.000 operários detidos.
A casa de Pablo Neruda em Santiago do Chile foi saqueada e os seus livros incendiados.

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EU NÃO ME CALO

Perdoe o cidadão esperançado
minha lembrança de ações miseráveis,
que levantam os homens do passado.
Eu não preconizo um amor inexorável.
E não me importa pessoa nem cão:
só o povo me é considerável:
só a pátria me condiciona.
Povo e pátria manejam meu cuidado:
Pátria e Povo destinam meus deveres
e se logram matar o revoltado
pelo povo, é minha Pátria quem morre.
É esse meu temor e minha agonia.
Por isso no combate ninguém espere
que fique sem voz minha poesia.

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Pablo Neruda

In: O testamento poético de Pablo Neruda. Incitamento ao Nixonicídio e louvor da Revolução Chilena. Tradução de Alexandre O'Neill. Agência Portuguesa de Revistas. Lisboa. 1975


NOTA: Na introdução a este livro, Pablo Neruda escreveu:
"Não tenho cura: contra os inimigos do meu povo a minha canção é ofensiva e dura como pedra araucana.
Pode ser esta uma função efémera, mas cumpro-a. E recorro às armas mais antigas da poesia, ao canto e aos panfletos usados por clássicos e românticos e destinados à destruição do inimigo.
Agora, firmes, que vou disparar!"


 



 


quarta-feira, 9 de setembro de 2015

“REFUGIADOS”, POR MARISA MATIAS

As notícias sobre refugiados não são de hoje, a crise dos refugiados também não. Mas hoje e amanhã, e depois de amanhã, nas semanas e nos meses que passaram somos levados pela secura atroz do que vamos lendo e vendo.



Um dia afunda-se um barco no Mediterrâneo, morrem 400 pessoas. Noutro dia morrem 700. Um dia outro soltam-se as imagens de mulheres, crianças, homens a enfrentar muros de segurança, a tentar saltar muros reais, a furar cercas de arame farpado. Num outro dia qualquer são as bastonadas, as pessoas encontradas mortas em contentores, os que jogam a sorte agarrados a camiões de transporte de mercadorias. A dureza e secura das imagens e das histórias que se acumulam é atenuada pelo anonimato, pela ausência de nomes, de histórias de vida, de trajetórias. É gente que deixou de ser vista como gente e que aparece como ilustração nos discursos xenófobos dos altos responsáveis por essa Europa fora que tão preocupados estão em garantir a “segurança” dos seus. O que é claramente uma luta pela vida é tratado como ameaça coletiva. É preciso ter medo, alimentar o medo, descaracterizar as vidas que estão em jogo porque dizem que esta gente é bem capaz de nos invadir e de pôr em causa os “valores europeus”. Tamanha contradição. Tamanho cinismo.
Quem é responsável por tudo isto? Os cínicos gostam de cultivar a ideia de que são “os próprios” os responsáveis. Há que combatê-los, portanto. Podem ser também responsáveis os regimes dos países de onde se foge, que atacam os seus e não lhes deixam alternativas. Mas responsabilidades nossas, essas nem pensar. Ora bem, é de crimes que estamos a falar, quem deveria ir a julgamento por estas mortes, por estes maus tratos, são os governantes – todos – que se envolveram na guerra miserável que está em curso na Líbia, ao arrepio de qualquer Direito Internacional, incluindo o da péssima decisão, há muito ultrapassada pelos acontecimentos, do Conselho de Segurança das Nações Unidas, e que agora nada têm a ver com isso. Mais longínquos vão ainda os tempos em que eram todos amigos. Eram ditadores, diriam os líderes europeus, mas eram os nossos ditadores. Muitas das pessoas que aqui estão ainda se lembrarão da tenda montada para receber Khadafi em Lisboa e a forma pitoresca como tudo foi noticiado. Nessa altura era tolerável perdoar todas as criatividades a Khadafi, como a Ben Ali, como a Mubarak. Dava jeito. Ter uma polícia de fronteiras fora das fronteiras europeias, um “outsourcing” para os trabalhos sujos de contenção de populações em fuga da guerra fazia jus ao “longe da vista, longe do coração” que tanto jeito dá nestas coisas. Os que passavam e chegavam a Lampedusa eram “poucos”. Ia dando para ignorar e era suficiente para perdoar qualquer excesso autoritário que houvesse.

Mas veio a Primavera Árabe e já não dava para ficar ao lado dos “nossos ditadores”, que rapidamente passaram a inimigos e aí veio a história da guerra na Líbia, uma guerra que não só não se quis evitar como se fomentou. E começaram a chegar nigerianos, somalis, ganeses… E muitos deles a morrer no trajeto. Alguém acredita mesmo que nigerianos, somalis e ganeses se teriam atirado para “câmaras de gás”, como os que morreram asfixiados no porão de um barco, se não tivessem a vontade imperiosa de escaparem a uma guerra que, mais dia menos dia, acabaria com eles como acabou com tantos outros. A guerra da Líbia, que é civil e foi de agressão externa, foi a causa directa dessa tragédia e os que a decidiram são responsáveis. O que sucedeu não foi um “efeito colateral”. Já depois disso, foram largas as centenas de homens, mulheres e crianças que voltaram a ser engolidas pelo Mediterrâneo. Foi por isso que em 2014 o governo italiano avançou com o programa de resgate e salvamento “Mare Nostrum”, o Mediterrâneo tinha-se convertido num cemitério. Mas os governantes europeus que nada aprenderam, nem querem aprender, deram ordens para suspendê-lo. A desculpa foi a da ameaça imigrante, ou nas palavras de Cameron: a “praga”. O ideólogo da suspensão, um respeitado dirigente europeu de seu nome David Cameron. Resultado? Só nos primeiros meses de 2015, houve um aumento de 1500% de mortes no Mediterrâneo em relação ao ano anterior. Mas enquanto a guerra prosseguir na Líbia – e ela vai prosseguir – contem com mais, sempre com mais. E qual foi a resposta europeia? Decidiu criar um novo programa – o Tritão – com um orçamento três vezes inferior ao Mare Nostrum italiano e com um mandato completamente distinto. Inseriram-no na Agência Frontex e passou a ser um programa de patrulhamento das fronteiras e de recambiar para a procedência os que tentavam a sua sorte. Perguntei uma vez a um sobrevivente: porque é que arriscou a vida? Respondeu: “é melhor escolher arriscar a vida num dia do que viver a arriscá-la todos os dias”.

Mas patrulhar não chega e tiveram a feliz ideia de que o combate às redes de tráfico – que têm obviamente de ser combatidas – seria feito através da destruição dos barcos velhos que se encontram no lado sul do Mediterrâneo. Alertámos para o facto de que a maioria desses barcos era o ganha pão de muita gente, que serviam para pesca, que destruíamos a base de rendimento de muita gente a quem já só isso resta e que quem trafica arranjará sempre um meio de fazê-lo se não se combater a prática. De nada serviu, destroem-se barcos e lavam-se consciências.


Em 2011, por comparação, andavam bem a Tunísia e o Egipto, com revoluções soluçantes e eleições. Mesmo a revolta síria contra Bashar Al Assad, justa e inevitável, teria mais hipóteses, porque o seu destino não estava ligado a uma nova aventura militar. Sarkozy, Cameron e Obama pareciam contentar-se com embaixadas e espiões e em manter Damasco sob pressão. Não desejavam uma nova frente de guerra. E também não teriam como obter a sua legitimação na ONU: a Rússia e a China estariam sempre ao lado da Síria. Vaticinámos que assim seria, mas não foi. Além do corte de relações diplomáticas com o regime sírio, os dirigentes europeus e norte-americanos não entraram na aventura da guerra na Síria, mas arranjaram maneira de alguém a fazer por eles. Em nome da democracia, lá se apressaram a armar os grupos opositores ao regime de Al Assad. E assim foi. Levantaram-se vozes e mais vozes sobre o que isso poderia significar, sobre o desconhecimento da composição dos grupos opositores, sobre a necessidade de uma solução política, mas nada disso contou. O resto da história, até hoje, já a conhecemos. Subestimar o carácter fundamentalista dos grupos opositores poderia não correr bem e não correu. Temos hoje o auto-proclamado Estado Islâmico – o ISIS – e a guerra civil na Síria converteu-se na pior das guerras. Já nem as embaixadas restam, a não ser a da República Checa com Eva Filipi à frente, a única que se recusa a fugir, uma gigante com menos de 1,50m. Podíamos até pensar que se aprendeu alguma coisa a história recente, mas começa a ser escusado ter crenças face à atitude perante um território onde convivem tantas. Um novo grupo ganha força e conquista território sírio, espalha o terror, obriga igualmente populações inteiras a fugir – o Al Nusra, que é a Al-Qaeda 2.0 –, mas já ouvi da boca de dirigentes europeus e norte-americanos ilustres que talvez seja de apoiá-los na batalha contra o ISIS porque, dizem, se trata de “terroristas moderados”. Entretanto, o ISIS espalha-se pela Síria, pelo Iraque, pela Turquia. Massacra populações inteiras por onde passa e mesmo nos locais onde há povos que resistem, como em Kobhane ou nas montanhas iraquianas onde ainda restam alguns dos Yazidi, os líderes europeus preferem não criar arrelias com Erdogan e convivem com a recusa sistemática da Turquia em deixar abrir um corredor humanitário de apoio ao povo curdo. Em relação à Síria, como disse, falhámos o vaticínio. A consequência traduz-se já em mais de 4 milhões de pessoas que foram forçadas a fugir: 1,8 milhões para a Turquia, cerca de 1,5 milhões para o Líbano, mais de 600 mil para a Jordânia, cerca de 300 mil que arriscaram ir para outro território em guerra, o Iraque, e algumas centenas de milhar que procuram a Europa. No último ano, foram 340 mil os refugiados que entraram na Europa, 83% dos quais sírios. Não temos nem ideia de quantos perderam a vida no caminho.
Para se perceber a dimensão da ameaça dos refugiados, como é tão comum ouvirmos dizer todos os dias com uma leveza cruel, é útil fazer um exercício de perspetiva. 340 mil pessoas representam 0,045% da população europeia. A ameaça dos refugiados totaliza uns esmagadores 0,045% da população total. Para carregar no tom e na dose, não se fala de refugiados, mas antes de imigrantes. Erro crasso e perigoso. Fala-se também de terroristas. Outro erro que pagaremos caro com sociedades cada vez mais fechadas sobre si mesmo e terreno fértil para o racismo e a xenofobia.
E, ainda assim, há sítios que resistem a esta torrente.
O Líbano tem o tamanho de dois Algarves e nele vivem quatro milhões de pessoas. Quando na Síria teve início a guerra, vaticinou-se que o Líbano lhe seguiria rapidamente os passos. Não era difícil de prever: um país com 18 grupos religiosos, habituado às tensões internas e às pressões externas, dividido em relação ao regime sírio, em resultado de uma longa história de amor-ódio e dependência com o país vizinho, e frágil não teria por onde escapar. Mas não foi assim. Muçulmanos – xiitas, sunitas, alauitas, drusos e outros tantos – e cristãos – maronitas, ortodoxos, gregos e outros tantos –, que tanta dificuldade têm em entender-se em relação a quase tudo, entenderam-se no essencial: manterem-se unidos em relação à questão síria. As autoridades libanesas conseguiram resistir ao contágio da guerra civil na Síria e manifestaram perante o mundo a vontade de fugir ao horror da guerra. O país dividido conseguiu unir-se. Ninguém deu por isso.




Durante 3 anos, no Líbano, mais uma vez, fez-se o que não se esperava e optou-se pela política de deixar entrar todos os que fugiam à guerra e à tragédia de uma vida destruída. No primeiro ano de guerra, entraram 20 mil refugiados sírios. No segundo, 268 mil. Entraram ainda mais 20 mil refugiados palestinianos vindos também da Síria e regressaram a casa 23 mil retornados libaneses. A estes têm de juntar-se os já acolhidos 280 mil refugiados palestinianos fugidos de outras guerras passadas. Em Fevereiro de 2013, da Síria entravam três mil pessoas por dia. Nessa altura, já estavam por todo o país, em 800 comunidades. Agora são mais de 1,5 milhões, a que se juntam cerca de 600 mil refugiados palestinianos. Precisam de tudo, perderam tudo, nada têm de seu. Todos viram morrer, a todos morreram pessoas. Nunca encontrei nenhuma família que estivesse toda junta. O Líbano é um pais sem saída, rodeado pela Síria, por Israel e pelo mar, mas acabou por ser uma das principais saídas para quem foge da guerra. Ninguém deu por isso.

Nessa altura, as autoridades libanesas decidiram não construir campos. E assim a quase totalidade das centenas de milhares de refugiados foi acolhida por famílias num país onde metade da população vive na pobreza. A responsável das Nações Unidas desabafou: “os libaneses são criticados por tudo e por nada e ninguém conta esta história extraordinária”. Tinha razão. O Líbano continua a ter todos os problemas que tinha antes e a esses somou novos. Começa mesmo a faltar tudo, incluindo território, que já está mais do que sobrelotado. O que se vai passar a seguir é uma incógnita. O Líbano fechou fronteiras este ano e teve mesmo de instalar 1200 campos temporários. Apenas 150 mil das 400 mil crianças em idade escolar vai à escola. Dessas, 12 mil crianças nunca foi à escola, as restantes já não vão há três ou quatro anos. Se resistem ou não, depende mais de nós do que deles. Não deixa de ser uma história extraordinária. Basta pensarmos o que seria se fossem as nossas portas abertas e todos nós a acolhermos nas nossas casas mulheres e crianças que de tudo precisam todos os dias, na esmagadora maioria de uma religião diferente. Tudo preso por um fio, tudo seguro pela generosidade de quem pouco tem. O senão está à frente do nariz. Até quando aguentarão. Sem apoio efetivo de outros países, pouco mais.
Nas três vezes que estive a trabalho no Líbano vi o que não queria ver. Ouvi o que não queria ouvir. No Líbano ou em Gaza ou em Lampedusa aprendemos que os limites da capacidade humana são sempre maiores do que imaginamos ou do que temos força para imaginar. Na fronteira com a Síria vi chegar pessoas diretamente da guerra. Não me esqueço de uma mulher que me disse: “agradeço a Deus ter-me aberto a porta”. Pensei na altura: deve ser isso mesmo, que nós humanos estamos sempre a um passo curto de não estar à altura.


Voltemos à geografia e à geometria europeias. As políticas xenófobas que têm sido adotadas por Cameron são tratadas como sendo parte do discurso democrata assente nos valores europeus. Mais grave ainda, é também com naturalidade que se tratam das inenarráveis propostas de Orban. Desde as alterações à Constituição húngara que voltou a pôr a casa/lar como o lugar destinado às mulheres, passando pelo referendo racista e chegando agora ao muro fronteiriço para impedir a passagem, nenhum dos dirigentes europeus ousa dizer uma palavra que seja para repudiar e condenar estas práticas. Chega-se mesmo a ridicularizar o assunto ou, melhor dizendo, a ridicularizar-nos, como foi a imagem de Juncker a recebê-lo numa reunião do Conselho com uma palmadinha nas costas, sorriso aberto e o cumprimento: “o nosso ditadorzinho”. É que Orban integra a mesma família política de Merkel, de Rajoy, de Passos, de Portas, de Juncker e as atrocidades deixam de sê-lo se praticadas pelos representantes das famílias políticas europeias responsáveis, como eles próprios se apresentam.


O segundo maior êxodo desde a Segunda Guerra Mundial tem de estar no centro das nossas preocupações. A resposta tem necessariamente de ser europeia, já que grande parte das responsabilidades são também europeias e nenhum país isolado tem condições para responder a uma crise desta dimensão. As medidas a propor têm de passar pela resposta de urgência e pela resposta de médio e longo prazo. Na resposta de urgência coloca-se a restauração de um programa de resgate e salvamento de vidas como o ‘Mare Nostrum’, suspenso por decisão europeia e substituído pelo programa securitário de patrulhamento das fronteiras Tritão; a criação de corredores humanitários para os fluxos de refugiados; a integração dos refugiados que chegam em todos os países e não aceitarmos que há responsabilidades diferenciadas entre os de receção (sobretudo, Grécia e Itália) e os outros, ou que podemos contar exclusivamente com os que têm uma política de abertura; essa redistribuição tem de ser feita através de um sistema que supere a lógica da quotas (a reunificação familiar é aqui uma questão fundamental); os fundos europeus destinados à proteção civil podem e devem ser usados para o acolhimento de refugiados; a adoção sem mais demoras do estatuto de refugiado na UE; o fim dos muros e vedações e das políticas de patrulhamento, cujos montantes envolvidos ultrapassam em muito os recursos disponibilizados para políticas de carácter humanitário. Nas medidas de médio e longo prazo impõe-se um embargo à venda de armas para os territórios em conflito e aos considerados “grupos da oposição” aos regimes (chega de interferência no Iraque, no Afeganistão, na Líbia, na Síria…); impõe-se uma moratória à compra de petróleo originário dos territórios ocupados pelo ISIS; um real empenhamento político para resolver os conflitos; uma política de cooperação para o desenvolvimento digna desse nome; o combate profundo às causas que levam 15 mil cidadãos europeus a deixarem os seus países para engrossarem as fileiras de combate de grupos terroristas como o ISIS, causas profundas associadas às políticas de austeridade e à ausência de futuro.


As quotas discutidas no último Conselho Europeu são, na verdade, a quantificação da nossa vergonha e pretendiam apenas lidar com uma pequena parte dos refugiados que já se encontram na Europa (40 mil), passando ao lado do problema de fundo. Mas até na questão dos refugiados, o governo português tinha que ser mais duro e firme do que proposta europeia de Junho, já de si, volto a dizer, vergonhosa. Portugal tinha uma quota para receção de 15 refugiados em 2013, e de 45 refugiados em 2014, e em nenhum dos casos as cumpriu. Dos 45 relativos a 2014 não chegou ainda um. Já para este ano e próximos, o Conselho atribuiu inicialmente a re-alocação de 2045 refugiados dos que estão na Grécia ou em Itália, mas Passos Coelho ‘regateou’ e conseguiu reduzir a quota para cerca de 1400. Não me esqueço das declarações à chegada, do orgulho bacoco e da alegria do primeiro ministro a quem quiseram impor 2045 refugiados, mas ele conseguiu reduzir para 1400. Tenho essas imagens guardadas na memória, mas recuso-me a comentá-las aqui. A linguagem não seria apropriada.


No espaço europeu, a receção e acolhimento de refugiados é regulada pelo Acordo de Dublin, cabendo aos países acolherem aqueles que requerem asilo em situação de risco de vida, de fuga à guerra. Bastaria cumprir a regulação existente. Há recursos europeus para o acolhimento de refugiados. Uma crise desta dimensão exige uma resposta à altura. Sim, Portugal deveria acolher mais refugiados. Passos Coelho não deveria ter regateado vidas.
A par de tudo isto há outros debates que nada têm que ver com este e que estão presentes todos os dias. Terrorismo e imigração. Os dois são sérios demais, os dois exigem respostas. Mas, por favor, não caiamos no engodo de falar de imigração em relação a este êxodo, nem de vagas de terrorismo.
Trazer a discussão sobre o encerramento do espaço Schengen para este debate é o exemplo mais do que claro. Schengen diz respeito à circulação de pessoas dentro do espaço da União Europeia. O pior desta Europa reflete-se precisamente aqui. Usar uma crise humanitária para impor, de forma não inocente, restrições à circulação de pessoas e criminalizar a imigração não é mesmo bom sinal. E aos que levam o argumento ao limite do terrorismo há que dizer: o encerramento do espaço Schengen não teria evitado nem um único atentado terrorista dos que ocorreram no espaço europeu. Todos eles foram cometidos por cidadãos europeus.


Texto da intervenção de 28 de Agosto no Fórum Socialismo 2015, publicado em "um pauzinho na engrenagem"



Eurodeputada, , dirigente do Bloco de Esquerda, socióloga.
In “ESQUERDA.NET”


terça-feira, 8 de setembro de 2015

Entrevista a António Guterres, alto-comissário das Nações Unidas para os Refugiados.

ENTREVISTA

Os europeus estão a forçar uma mudança nas políticas dos seus governos amedrontados


António Guterres, o alto-comissário das Nações Unidas para os Refugiados, assiste, esperançado, à impressionante onda de solidariedade e sentido de urgência que cresce entre os cidadãos da Europa perante a tragédia dos refugiados, prevendo que isso vai ter consequência nas decisões da União Europeia



Guterres critica a falta de visão estratégica da Europa DENIS BALIBOUSE/REUTERS


Há meia dúzia de dias, António Guterres dirigia palavras duríssimas à forma como a União europeia estava a lidar – a não lidar – com a crise dos refugiados, ao fim de seis meses de tragédia contínua. Hoje, o Alto-comissário das Nações Unidas para os Refugiados vê na reacção das sociedades civis e na opinião pública de praticamente todos os países europeus uma força que acabará por mudar a política europeia.
Está a enfrentar a maior crise de refugiados desde a Segunda Guerra, com meios que muitas vezes são escassos tendo em conta a dimensão da tragédia. A quatro meses do fim do seu segundo mandato não tem mãos a medir. A União Europeia, diz ele, tem de enfrentar esta emergência mas tem também de se dotar uma visão estratégica.
Tem usado ultimamente palavras bastante duras em relação à forma como a União Europeia tem lidado com esta tremenda vaga migratória. Acredita que as suas palavras estão a ser ouvidas?
Creio que a influência das minhas palavras será limitada mas também creio que há, neste momento, um fenómeno novo na Europa que me leva a ter esperança de que terá uma profunda influências nas decisões da União Europeia e, nomeadamente, as que o Conselho de Ministros do Interior terá de tomar em breve. Estamos a assistir à emergência e ao desenvolvimento de uma extraordinária reacção positiva da sociedade civil, dos cidadãos anónimos, da opinião pública que, em toda a Europa, porventura, contrariando as expectativas de Governos amedrontados com as manifestações xenófobas a que fomos assistindo nos últimos meses. Os governos têm hoje políticas mais restritivas do que aquilo que parece ser a vontade dos seus povos. A minha convicção é que isso levá-los-á a compreender a necessidade de uma resposta de emergência efectiva e solidaria da União Europeia, que esteja à escala do problema, em vez das medidas mais ou menos incrementais que, até agora, foram definidas e que, ainda por cima, ao não serem sequer aplicadas, conduziram a uma situação de verdadeiro caos numa grande parte da Europa
Acha que a força de uma fotografia é responsável por essa mudança? 
Creio que não é apenas uma fotografia. É sobretudo a persistência com que a comunicação social tem reflectido esta tragédia. Mas o drama da família curda em que estava a pensar teve, de facto, um impacte gigantesco, quer nos meios de comunicação tradicionais, quer nas redes sociais. Esta consciência crescente que se foi gerando, acabou por levar as opiniões públicas a considerarem que é absolutamente inaceitável que a Europa, que é também depositária de um conjunto de valores de humanismo e de defesa dos Direitos Humanos, esteja a falhar historicamente em relação a este desafio com o qual está confrontada. Há a percepção de que a Europa tem obrigação de inverter o caminho, perante quem está a viver esta tragédia, oferecendo-lhes a protecção que esperam dela. De resto, têm direito a ela pela própria lei internacional, para além de uma visão humanista do mundo que é a sua.
Surpreendeu-o a liderança da chanceler alemã? 
Não posso dizer que me tenha surpreendido, mas creio que é importante prestar homenagem não só o papel da chanceler mas dos dirigentes políticos alemães. Há que dizer que tiveram a coragem de afirmar com grande coerência uma abertura em relação aos refugiados que procuram a Alemanha como solução para a sua tragédia ainda antes desta onda que as opiniões públicas agora abraçam. E também a firmeza que demonstraram na condenação, sem quaisquer reservas, das manifestações xenófobas que ocorreram em alguns sectores da sociedade alemã, embora claramente minoritários e marginais.
E esperava esta reacção negativa dos países de Visegrado, sobretudo a Hungria?
No ACNUR, nós temos uma relação de grande afecto com o povo húngaro que, naturalmente, nos faz ver com particular angústia a situação actual naquele país. A primeira grande operação do ACNUR, quando terminou de lidar com as consequências da II Guerra, foi exactamente na crise dos refugiados húngaros [provocada pela Revolta de Budapeste contra Moscovo, em 1956, que levou á intervenção militar da União Soviética]. Nessa altura, milhares de húngaros foram recebidos na Áustria e na Jugoslávia de portas abertas e de uma forma admirável. Em quatro meses, 140 mil húngaros foram relocalizados, metade em outros países europeus e outra metade fora da Europa, numa grande demonstração de solidariedade. A minha esperança é que o povo húngaro, que tem manifestado grandes demonstrações de solidariedade e apoio em relação aos refugiados bloqueados no interior da Hungria, acabe por obrigar o seu governo a mudar de posição do país, alinhando-o com o que espero que venha a ser a da União Europeia.

É preciso que todos reconheçam que é necessária uma resposta de emergência para garantir as condições de recepção, mobilizando as várias agências europeias de protecção civil e de ajuda humanitária, para que haja os recursos humanos e financeiros necessários para garantir centros de recepção e de assistência, que façam com que as pessoas que chegam às ilhas gregas, à Hungria ou à Itália se sintam bem acolhidas, que vejam as suas necessidades básicas atendidas e que, ao mesmo tempo, se possa fazer um registo sistemático dessas pessoas, determinando as que precisam da protecção da lei internacional. Em relação a essas, é preciso um mecanismo de recolocação no interior da Europa.
A primeira estimativa que fizemos é de cerca de 200 mil no mesmo prazo fixado pelo Conselho Europeu quando aprovou as primeiras medidas da agenda das migrações (dois anos), mas de uma forma completamente solidária, envolvendo os países europeus sem qualquer excepção e, simultaneamente, aumentando o volume das oportunidade de acesso legal à Europa através da reinstalação. Como faz a Alemanha, com cerca de 30 mil casos a partir do Líbano, da Jordânia e da Turquia, graças a uma política de vistos mais flexível e mais aberta, de bolsas de estudo para jovens, de um programa mais eficaz de reunificação familiar. Isso é fundamental para que muita gente deixe de recorrer a estes grupos de gangsters que têm colocado a sua vida em perigo de uma forma totalmente repulsiva.
Esses 200 mil são suficientes quando há, por exemplo, um milhão de sírios na Jordânia?
Não vejo que todos os sírios que estão nos países limítrofes venham para a Europa. Estou a falar das tendências que constatamos neste momento e nas previsões que podem ser feitas neste momento, no que respeita às medidas de recepção de emergência. Como disse, tem de haver outras formas de os sírios terem acesso à Europa, mas também aos países do Golfo e a outros países que devem fazer muito mais do que têm feito por uma população que está condenada a um conflito que parece interminável. Mas é preciso responder também a uma degradação das suas condições de vida nos países de acolhimento - Turquia, Líbano, Jordânia, Iraque - por falta de apoio humanitário e financeiro a esses países, por parte das organizações internacionais.
Tem tido os meios necessários para esta vaga que já disse ser a maior desde a II Guerra? 
Infelizmente não. A resposta humanitária aos refugiados sírios está, neste momento, financiada a 41% e, pior ainda, no caso dos refugiados que estão na Turquia, a apenas 21%. E, como se sabe, é pela Turquia que que está a ocorrer o fluxo maior de refugiados, predominantemente sírios e alguns outros, embora estejamos a enfrentar sobretudo uma crise de refugiados sírios, para a qual, de resto, nós avisámos muitas vezes. O que se passa no Mediterrâneo Central é também muito importante. Houve tragédias terríveis, e ainda bem que foram reforçados os meios de salvamento [com a Frontex], mas os fluxos não são muito diferentes do que eram no ano passado. Na Grécia, há hoje seis vezes mais de refugiados do que havia no ano passado, que depois atravessam os Balcãs para chegar à União Europeia. É aí que encontramos agora o pico da crise e a mais clara incapacidade de resposta urgente e de falta de visão estratégica da Europa. E, como vimos, quando alguns países procuram criar medidas restritivas, isso acaba por criar situações de bloqueio e de tensão que são também insustentáveis.
Acredita que a Europa acabará por entender o mundo em que vive e que precisa de se preparar para ele?
Hoje, como já disse, os cidadãos europeus estão a perceber de uma forma eloquente esta nova realidade. Em toda a parte, incluindo em Portugal, onde já foi criada uma plataforma envolvendo dezenas de organizações, ou com famílias que constantemente oferecem as suas casas. Quando assistimos a uma reacção tão clara e tão forte por parte das populações europeias, creio ser inevitável que, mais cedo ou mais tarde, os dirigentes políticos europeus compreendam que têm, também eles, de fazer alguma coisa. Aliás, na linha que tem sido defendida pela própria chanceler alemã e outros dirigentes políticos, espero que todos compreendam que é preciso mudar de rumo, tendo uma resposta eficaz à emergência e uma política consistente para a eliminação das causas profundas desta vaga de refugiados. Tão importante como responder às necessidades dramáticas dos que estão em fuga de conflitos terríveis é encontrar políticas que possam permitir mais capacidade de prevenção e de resolução desses conflitos e formas de cooperação económica que tenham em conta a mobilidade humana e que façam com que, cada vez mais, as migrações sejam uma opção e não um imperativo de sobrevivência.

A imprensa internacional tem referido o fim do seu mandato como se fosse uma decisão sua ou uma surpresa. 
Não é surpresa nenhuma. Estou a concluir dois mandatos no ACNUR, o que é a norma geral de funcionamento das Nações Unidas. Excepcionalmente, o meu segundo foi prolongado seis meses, exactamente para assegurar uma transição eficaz, como é norma das Nações Unidas. Chegou a altura de outra pessoa assumir no final do ano o papel de Alto-comissário.
O que dá ideia é que esta crise monumental que está a enfrentar não devia levar a mudanças. 
Este prolongamento do meu segundo mandato já foi definido pela Assembleia Geral da ONU em Setembro do ano passado. Como vê, tudo isto está previsto há imenso tempo e decorre em termos absolutamente normais.