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quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Um dia

Um dia, esqueço-me
de habitar o presente
e parto à procura do futuro
nos traços que desenhei de ti.


Maria Teresa Sampaio
28 janeiro 2016

René Magritte

segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

ALEGRIA, IMENSA ALEGRIA [SUKOT]

Povoa-nos, alegria. Habita em nós como um barco ilumina o oceano,
como um cavalo na intensidade da planície deserta
levanta os seus olhos até ás Hastes do plátano incandescente.
Constrói em nós a arquitetura das cidades do sul, o labirinto,

o oculto, a fome, a sede, a rapidez do nome, o seu despojamento
eterno, a água dos litorais, o Outono, a passagem das aves.
Povoa-nos, alegria imensa de alegria sem adorno, apenas
alegria sem deuses, nem a passagem, o sacrifício, as leis, os rios

do exílio, o êxodo, a sombra das cabanas, o sangue, a terra, o rosto
frio, os atros perdidos, os lábios secos, o coração do deserto.
Povoa-nos como a uma pátria de exilados, como a um corpo sem vestes

nem fragmentos, colheitas, transpiração, ardor, uníssono.
Habita em nós, alegria da vastidão, começa em nós onde o tempo
Sobrevive. Povoa-nos, alegria, envolve-nos sofregamente, veloz.

~~

Francisco José Viegas
  
In Metade da Vida, Quasi, Abril, 2002.

 Pablo Picasso








"TUDO O QUE EU TENHO TRAGO COMIGO" - HERTA MÜLLER


Falar de uma sensação que se desconhece e conseguir a proeza de fazer o leitor senti-la, ao ponto de a angústia se tornar insuportavelmente dolorosa, é obra de uma enorme escritora. Se Herta Müller necessitasse de legitimação para o Prémio Nobel que recebeu em 2009, este livro cumpre esse objetivo na totalidade.

“Tudo o que tenho eu trago comigo” é uma autêntica obra-prima  da literatura, ultrapassando todos os cânones habituais. Primo Levi testemunhou a sua experiência nos campos de concentração em “Se isto é um homem”, livro que nunca mais se esquece. Outros sobreviventes escreveram e nós questionámos, arrasados: como foi possível? Aqueles que, como eu, leram o “Arquipélago de Gulag", por Alexander Soljenítsin, nos anos 70, ficaram completamente desiludidos em relação aos ditames e aos sonhos que os dirigentes do Partido Comunista nos vendiam desde a clandestinidade até ao 25 de Abril. Muitos esqueceram, bloquearam estas verdades incómodas e ainda hoje votam no “Partido”, “porque ele é necessário”, ou por outras razões que não vêm ao caso.

No posfácio do livro, Herta Müller, cuja mãe esteve cinco anos num campo de trabalho, conta que o tema era tabu, porque recordava o passado fascista da Roménia”. Em Janeiro de 1945, em nome de Estaline, todos os alemães residentes na Roménia, homens e mulheres, entre os 17 e os 45 anos, “foram deportados para a prestação de trabalho forçado em campos soviéticos”. Em 2001, a escritora começou a registar as conversas com pessoas outrora deportadas da sua aldeia e, em 2009, foi editado este romance, que conta a história de um jovem deportado, em Janeiro de 1945, quando ainda havia guerra. Chamava-se Leopold Auberg, mas nem sequer o nome importava, porque no campo ficava-se desprovido de tudo.

E assim começa o romance com as frases do próprio deportado, quase premonitórias:
“Tudo o que eu tenho trago comigo.
Ou: Tudo o que é meu trago comigo”

Em breve esse “tudo” se transforma em nada, a não ser quando, raramente, se consegue poupar, de manhã até à noite, uma pequena côdea de pão duro, que se guarda na almofada e, muitas vezes é roubada. Não me lembro de sentir um tal crescendo de angústia a ler um livro, de tal forma que se torna insuportável e nos rói o peito de dor.
O próprio protagonista diz “Como é que uma pessoa anda por este mundo, quando sobre si nada mais sabe dizer, a não ser que tem fome. Quando já não consegue pensar noutra coisa”.

Pode parecer impossível, mas Herta Müller consegue transmitir o horror de uma forma poética, filosófica, sem, contudo, lhe tirar o efeito devastador e dramático, de pura e real tragédia humana. “Não há palavras adequadas ao sofrimento da fome” – diz o jovem alemão. E acrescenta: “Ainda hoje preciso de provar à fome que lhe escapei. Eu como literalmente a própria vida, desde que não tenho de passar fome”.
Mesmo cinco anos depois, quando foi libertado, ou até sessenta anos depois, Leo não consegue saborear a alegria da libertação e do regresso a casa. “Há muito” que tinha “ensinado a minha saudade de casa a ter os olhos secos. E agora desejo que a minha saudade também deixe de ter dono”. Mas, a humanidade é frágil e Leo cede, ao receber uma carta da mãe com a fotografia do seu novo irmão, que logo apelida de seu substituto. Ajoelha-se “à beira da mesa” deixa cair “as mãos sobre ela e a cara sobra as mãos” e soluça, porque logo assume que os pais fizeram um filho porque já não contam com ele.

A libertação nunca é o que se pensa, não coincide com os sonhos que a imaginação pintou. Depois de regressar a casa, nunca ninguém lhe perguntou nada. O poder das palavras mata. Leo ficou preso dentro de si, exilado de si próprio, irremediavelmente só, com um sentimento de inferioridade, de possessão pelo outro, irremediável. Tal como afirma, muitas décadas depois de ter vivido aquela experiência radical de fome, de compulsivo trabalho forçado, de ausência total de posse e de livre arbítrio, Leo acaba por constatar que tem medo de ser livre: “Em mim habita o tirano da misericórdia, parente do anjo da fome”.
E, apesar de tanta miséria física e moral, Leo sabe que “A felicidade é uma coisa repentina.”

Entrei no ano de 2016 a ler este romance tristemente belo, despojado, em que o horror é naturalmente devorado até ao fim, e nem a redenção chega para substituir a lembrança vívida da FOME. Como explicar, então, que este é um dos mais belos e poderosos romances que já li?



Lisboa, janeiro de 2016
Maria Teresa Sampaio​

"Tudo o que eu tenho trago comigo." Herta Müller. D. Quixote, Junho, 2010.

domingo, 24 de janeiro de 2016

Purity - Jonathan Franzen

Purity (PIP ) é o nome da protagonista do livro, uma jovem que terminou o seu curso universitário e trabalha, desesperada, para pagar a dívida ao Banco que financiou os seus estudos universitários. 
Todo o romance é construído em busca da identidade perdida. Ela sabe pela sua mãe que o nome de ambas não é o verdadeiro e desconhece quem é o pai, porque a mãe recusa contar-lhe a sua verdadeira história de vida. A mãe de Pip é uma personagem radical, manipuladora, complexa, com evidentes problemas psicológicos, mas, ainda assim, sedutora. 


Purity, no sentido de integridade, pode também ser uma alegoria deste romance. Na democracia, mas também no caos da nossa sociedade, em que o reino da Internet ainda é omnipresente, Jonathan Franzen procede a uma brilhante desconstrução dos mitos que acompanham, vulgarmente, o sonho americano, com um vigoroso idealismo e generosidade de espírito, acompanhados de uma ironia e mordacidade que se impõem como o verdadeiro estilo deste romance, sem retoques literários ou sequer poéticos.


Purity, que Colm Tobin, no New York Times, considerou um romance tão “ambicioso”, quanto de “plenitude and panorama” podia resvalar,  se Jonathan Franzen não tivesse a tremenda habilidade de conseguir colocar o leitor na cabeça de todos os seus personagens (e são muitos), agarrando-o, de cada vez que corre o perigo de se perder, no meio da abundância de características e pormenores.
 
Há outras duas personagens, para além de Pip, que preenchem secções inteiras do livro: aquele que se descobre, quase no fim, ser o  pai, Tom Aberant, um homem sério, íntegro, com “um sentido de dever morbidamente exacerbado”, que dirige um site de jornalismo de investigação on line  e Andreas Wolf, dissidente  alemão da RDA, com uma personalidade completamente manipuladora e, por vezes border line, carismático e bem parecido, que dirige, na Bolívia, o Projeto Luz Solar, parecendo querer superar Snowden e Assenge, que ele vitupera. Com base na investigação e na pirataria informática, denuncia  governos corruptos e empresas que abusam do poder. 
Segundo Andreas Wolf:
“A razão pela qual ainda temos sucesso e a WikiLeaks está a afundar-se (pág. 606) é que as pessoas acham o Assange é um tarado sexual autista e megalómano. As suas capacidades tecnológicas não se alteraram. O que se alterou foi que as pessoas que têm conhecimento de sujidades, não vão levá-las a uma pessoa suja. As pessoas que expõem sujidades fazem-no porque estão desejosas de limpeza.”
Em defesa do jornalismo, contra a pirataria informática, Jonathan Franzen expõe o que pensa, através de Leila Helou, jornalista do Denver Independent (do qual Tom Aberant era diretor): 
“Os delatores limitam-se a vomitar informação. Cabe ao jornalista verificar, condensar e contextualizar a informação que eles vomitam” e, mais adiante, acrescenta: “Andreas Wolf é um homem tão cheio de segredos pessoais sujos, que vê o mundo inteiro como segredos sujos”.


Com uma superior capacidade de observação social de certos ambientes e relações humanas disfuncionais, das sociedades do nosso tempo e, das redes que, através da Internet, ligam todo o mundo, Jonathan Franzen constrói um poderoso romance intersecionista, com um estilo narrativo coloquial, informativo, na primeira pessoa, por vezes irónico, por vezes satírico, simples, sem quaisquer floreados. O recheio é já por si só muito intenso e variado, com um homicídio, um suicídio, segredos, manipulações e mentiras, prendendo completamente a atenção do leitor. O estilo de Franzen em Purity é como se ele pretendesse apenas absoluta clareza.

Purity é um complexo mosaico de histórias de pessoas e de lugares que se intersecionam,  desde a Alemanha de leste, à Stasi, à queda do Muro de Berlim, à Califórnia, ao Colorado e à Bolívia.


Franzen consegue  escrever com seriedade, inteligência  e humanismo  sobre a  condição humana.
É, sem dúvida, um dos maiores escritores do nosso tempo.



Jonathan Franzen, Purity. D. Quixote, 1.ª edição: setembro de 2015


Maria Teresa Sampaio

24 de janeiro de 2016