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terça-feira, 28 de julho de 2015

Regresso

A arquitectura do teu corpo
inunda o espaço branco da minha memória.
Emerges subitamente possante
como um rio entre fráguas.
O som rumorejante da tua voz
acorda-me da letargia da espera.
Não sei se te perdi
ou se te achei
passado que foi
este tempo de esquecimento.
  
Teresa Sampaio 
  

 Imagem: Andrea Paolini Merlo




Ruínas

Clandestinamente acalento a tua imagem
na raiz dos meus sonhos.
Ebriamente procuro-te
entre sorrisos insinuantes
no nevoeiro dos dias.
Ouço expectante as mentiras que me sussurram
em busca de uma velha poesia
nascida no passado entre nós.
Mas logo desisto.
Não consigo encontrar-te
nos destroços desta maré baixa sem luar.



 Teresa Sampaio

Imagem: Google

Nasci para gostar de gostar

nasci para antever a luz
por detrás das nuvens mais escuras
para sondar o insondável
e perscrutar o que não é visível ao olhar
nasci para aprender a aprender
e descobrir que tudo está por descobrir
nasci para lutar em todos os momentos
pela liberdade e saboreá-la
com o insaciável desejo de um fruto proibido
nasci para ser livre como um potro selvagem
que cavalga um mundo sem fronteiras
e sacode a mão que o quer subjugar
nasci para ser criança mãe e avó e novamente
criança na cristalina alegria dos risos gaiatos
no incansável jogo lúdico
do que se faz e desfaz e se volta a fazer
na fulgurante cumplicidade do amor
nos rarefeitos cumes do dever solitário
e no espanto criador
de quem se perde e se acha
para  além de todos os limites


nasci para caminhar à beira do abismo
aceitando o desafio de o transpor
e de um salto conhecer o lado de lá
da  vida num eterno e circular retorno

nasci para gostar de gostar



Teresa Sampaio


 Imagem de Bessie Pease Gutmann

 Monet
Van Gogh

Cais das Colunas. Lisboa. Catarina Sampaio Marques

 Palácio da Pena. João Carvalho

 Palácio da Pena. Catarina Sampaio Marques

Sagres. Cabo de São Vicente. Google.

Jogo

Consente que te diga:
a vida é um jogo de crianças
que nos entretemos a fazer e desfazer incessantemente.
Olha bem para mim.
Não sentes a magia do sol nas mãos ágeis
a queimarem-te imaginariamente o corpo?
Não vês como brinco com o novelo dos dias
numa lúdica tarefa de construção e destruição?
Não esperes que te desvende o sentido de tudo.
Se quiseres, parte comigo à descoberta do insondável.
Havemos então de nos perder
para encontrar a razão de estarmos aqui
a falar de política e de filosofia
à distância de milhares de anos-luz.
Repara: bastaria estendermos a mão
para desfazer o mal entendido das palavras
e reduzir a nada este muro de civilização
que, como adultos mentirosos,
nos afadigamos a erguer cerimoniosamente.
Suspendamos um pouco este diálogo de surdos
e sejamos as crianças que escondemos em nós,
sem limites, sem preconceitos nem timidez.
E, já agora, consente que te diga:
eu não sou só o que as minhas palavras
deixam transparecer, e tu também não és apenas o sujeito burguês, formal,
que me fala de negócios como se de poesia se tratasse.
Esquece por momentos o teu status.
Eu prometo não te desiludir.
E sabes porquê?
Porque vivo gulosamente a aventura
sempre que ela, meteoricamente, incendeia os meus dias.


Teresa Sampaio

Contradição




Como falar-te do sol que me incendeia
quando me beijas,
da solidão que me gela
quando a tua ausência mais me dói?
Como explicar-te este súbito desejo de fugir
e de ao mesmo tempo ficar?
Como fazer-te sentir
que para mim só tem sentido
o que me é dado sem ser preciso pedir?
E afinal para quê dizer-te tudo isto?
Teimosamente subsiste em mim
a sensação de não valer a pena.
Poderás ao menos compreender a razão
deste emaranhado de contradições?


Teresa Sampaio 



Como um rio

É o amor que me dá vida. 
Pela tua boca eu respiro o verão
que colhe frutos maduros nos meus seios.

No teu corpo eu corro como um rio
desaguando no imenso mar do nosso desejo.

As tuas e as minhas mãos
desenham as rotas de um futuro rubro
nas manhãs que nascem da nossa noite
de desejo puro.


 Teresa Sampaio





Canto de Amor


Amor, amor
Canta comigo esta cantiga de Maio
este poema de Abril.
Acerta o teu passo pelo meu,
pelo de quantos, confiantes,
rasgamos a madrugada com música e flores.

Amor, amor
Canta comigo esta cantiga de Maio
este poema de Abril.
Abraça-me e vem modelar o amanhã
neste presente arrancado ao passado
numa noite de esperança.


 Teresa Sampaio




Cansaço


Ás vezes a vida cansa
como uma velha música
que não deixa de tocar
e sem querer nos faz chorar.





Teresa Sampaio

Brasa


Olho a rosa que nasce dos teus lábios,
as estrelas no firmamento do teu olhar
e enlouqueço de alegria
quando me colhes como flor selvagem
no fogo do nosso desejo.



Teresa Sampaio 




Auto-retrato

Ouve bem. Não sou o que tu pensas que eu sou,
nem sequer a imagem que desenhaste de mim.
Mas também não sou o que julgo ser.
Sou o traço de união
entre o que faço e o que desejaria fazer.
Sou as reticências que se acrescentam
ao que apenas se deixa adivinhar.
Quando olhares para mim não esperes dogmas,
porque só quando o instante decisivo
irromper com a urgência do inevitável
eu te direi o que vou fazer.
Mas faço-o sem hesitações
e, então, nada nem ninguém me detém.

Não me peças conselhos porque se o fizeres
estás a escolher antecipadamente o meu rumo
e esse sou eu quem o constrói ao caminhar.
Sou livre. Por isso sou capaz de escolher
até quando a opção parece impossível
e sei assumir todas as consequências,
mesmo que por vezes a dor me cegue.

Perguntas-me o que significa o amor para mim.
Respondo-te que é tão importante como a liberdade
e que sem eles me é impossível viver.
Por isso me lanço algumas vezes
num barco sem remos nem motor,
no oceano da aventura sem limites.

Queres conhecer-me? Desiste.
Eu própria me desconheço
embora cultive o hábito doloroso
de mergulhar no fundo do meu poço
p'ra colher surpresas e também desilusões.
Mas, tem um pouco mais de paciência.
Imagina alguém que se consome
no incêndio que ela própria alimenta,
que é palco das emoções mais adversas,
que em cada instante extravasa o seu próprio sentir,
que está sempre além da própria razão
e cujo sonho excede constantemente
as margens da contida realidade.
Imagina ainda alguém
que é albergue de todas as sensações,
que tenta pôr-se na pele de todas as personagens,
sofrer todas as mágoas, rir todas as alegrias,
combater todas as injustiças,
estar ao lado de todos os oprimidos,
dar uma mão amiga a todos os pedintes,
compreender todos os marginais,
saltar, pular e brincar com todas as crianças,
dialogar com todos os adolescentes,
alguém capaz de pegar em armas,
se for necessário, p'ra defender a liberdade.
Se é pouco o que te disse, procura tu o resto.
Não voltarei a falar-te de mim.
Prefiro sentir-me, sentir tudo.
Estou aqui à beira do abismo,
mas com as pernas ainda ágeis para o transpor,
e com olhos de águia para abarcar,
com um só olhar, a imensidão deste desfiladeiro.
Se não te apressas, perdes-me.
É que estou sempre a partir.
Não levo malas comigo,
nem apanho um qualquer comboio.
Transporto tudo dentro de mim,
num excesso que por vezes transborda em solidão.
Não preciso de empurrões solícitos.
Vou por onde quero, para onde quero,
pelo caminho acidentado que escolhi.
Se tropeçar e cair é comigo.
Enquanto tiver forças levantar-me-ei sozinha.
O hoje não me satisfaz.
O meu destino é o depois de amanhã.


 Teresa Sampaio

Ausência



Isto que chora dentro de mim
como criança a quem prometeram uma estrela,
isto que sinto rasgar-se,
que arde e dói como não sei o quê,
isto que cansa de esperar,
que ri e soluça
e tem sabor a loucura,
isto que tenho dentro de mim
é talvez a saudade do desconhecido,
é por certo a ausência do que não tenho.





 Teresa Sampaio



Adiamento


Dia a dia, hora a hora,
o meu país vai-se adiando.
A memória perde-se nas promessas
de um futuro sempre protelado.
A palavra crise já faz parte
do léxico normal de todos.
A fome e o desemprego
são o pesadelo real
dos que a nada mais têm direito.
A descrença e o desespero
instalaram-se numa rotina
tecida na hipocrisia dos gestos inúteis,
na arquitectura das palavras ocas.
Mas há quem teime em sonhar
e acalente a utopia,
quem forre com o musgo da esperança
esta pequena barca
que navega à deriva
entre os destroços de um projecto,
em direcção às águas límpidas
do oceano sem limites.






 Teresa Sampaio