Publicação em destaque

terça-feira, 25 de outubro de 2016

Vieste

Vieste.
Senti-te ainda longe
quando não eras esperado.
Só o vago sentimento de júbilo
absolutamente inexplicável
e o muito suave tremor no corpo
me anunciavam a tua vinda.

Vieste,
e a primavera nasceu súbita,
com o perfume das rosas
e o aroma dos frutos suaves,
nas agruras do inverno.

Vieste
como música
como lava
e os diques romperam-se
no tumulto dos beijos
na  quentura dos abraços.

Maria Teresa Sampaio
2016-10-25
Salvador Dali

No silêncio


No silêncio do teu nome
na noturna ausência da tua pele
inscrevem-se notas brancas
lancinantes como punhais
que abrem sulcos magoados
no rumor vago dos meus dias

Maria Teresa Sampaio
Pablo Picasso



sábado, 22 de outubro de 2016

Beijo

Não quero o primeiro beijo: 
basta-me 
O instante antes do beijo.


Quero-me
corpo ante o abismo,
terra no rasgão do sismo.

O lábio ardendo
entre tremor e temor,
o escurecer da luz
no desaguar dos corpos:
o amor
não tem depois.

Quero o vulcão
que na terra não toca:
o beijo antes de ser boca.

Mia Couto
In 'Tradutor de Chuvas'

'V-J Day in Times Square', fotografia de Alfred Eisenstaedt, retratando 
beijo de um marinheiro a uma enfermeira, no meio da multidão, que 
celebra o anúncio do fim da II Guerra Mundial, em 14 de agosto de 1945.

terça-feira, 18 de outubro de 2016

Nietzsche e Pessoa

Nietzsche e Pessoa – ensaios
Edição Bartholomew Ryan, Marta Faustino, Antonio Cardiello.
Tinta da China, 1.ª edição: fevereiro de 2016.

É uma obra muito importante que, em boa hora, foi editada, reunindo os ensaios de conhecidos e consagrados estudiosos de Pessoa. 

Tal como Richard Zenith escreve, também a mim causam admiração ”as coincidências entre um e outro”. À medida que avançava na leitura da obra de Pessoa, mais ou menos em simultâneo com o estudo de Nietzsche, comecei a aperceber-me de pontos comuns. A confirmação chegou quando o Professor Eduardo Lourenço primeiro escreveu sobre o tema, nos anos oitenta. Na realidade, até mesmo quando o poeta vitupera violentamente o filósofo, não consegue apagar as suas marcas. 

Explicita Antonio Cardiello que, para Nietzsche “O sobre-humano (Übermensch) é discípulo do deus Dionísio, por aceitar a vida em todas as suas manifestações, no prazer de se transformar, encarado como alternância da vida e da morte” e o Professor Eduardo Lourenço, referindo-se ao heterónimo Álvaro de Campos, diz-nos: “Na realidade, o poeta da ‘Ode Triunfal’ e da ‘Ode Marítima’ oscila constantemente entre a visão cruel de Nietzsche e o fraternalismo espiritualizante de Walt Whitman. 

É destacadamente na ‘Ode Triunfal’ que Álvaro de Campos tem em si «A fúria de todas as chamas, a raiva de todos os ventos, /A espuma furiosa de todos os rios, que se precipitam.» Canta o presente, como canta também o passado e o futuro, sem renegar nada do que disse ou fez, aceitando tudo o que foi, tudo o que é e tudo o que será:
«Quanto fui, quanto não fui, tudo isso eu sou.
Quanto quis, quanto não quis, tudo isso me forma.
Quanto amei ou deixei de amar é a mesma saudade em mim»

Trata-se de um rotundo e voluntarioso SIM à vida, uma poderosa afirmação de querer e de libertação. Nietzsche tinha-o dito pela boca de Zaratustra: “Poeta, decifrador de enigmas e redentor do acaso, ensinei-lhes a serem criadores de futuro e a libertar com a sua atividade criadora tudo o que foi. Salvar o passado no homem e transmutar tudo o que foi, até que a vontade declare: «mas eu queria que fosse assim! E é o que quererei de ora em diante!».
Zaratustra ama “aquele que tem a alma transbordante, a ponto de perder a consciência de si mesmo e nele carrega todas as coisas! Assim á a totalidade das coisas que causa a sua perda.” Álvaro de Campos sente tudo de todas as maneiras, [1] excessivamente, como um monte confuso de forças cheias de infinito. Tem em si o caos que Nietzsche considera necessário “para gerar uma estrela dançante”. Anseia ser todos e tudo. Transborda emoções. Pertence a tudo para pertencer mais intensamente a si próprio. Transcende-se para melhor conter em si o universo inteiro: 

«Quanto mais unificadamente diverso, dispersadamente atento,
Estiver, sentir, viver, for,
Mais possuirei a existência total do universo,
Mais completo serei pelo espaço inteiro fora.»

Maria Teresa Sampaio
2016 outubro 18











[1] “Afinal a melhor maneira de viajar é sentir”, in Poesia, Assírio & Alvim, ed. Teresa Rita Lopes.

sábado, 15 de outubro de 2016

Aniversário de Álvaro de Campos - Poema da Canção sobre a Esperança

15 de outubro
Aniversário de Álvaro de Campos
*****************************************************
Poema da Canção sobre a Esperança
I
Dá-me lírios, lírios,
E rosas também.
Mas se não tens lírios
Nem rosas a dar-me,
Tem vontade ao menos
De me dar os lírios
E também as rosas.
Basta-me a vontade,
Que tens, se a tiveres,
De me dar os lírios
E as rosas também,
E terei os lírios —
Os melhores lírios —
E as melhores rosas
Sem receber nada,
A não ser a prenda
da tua vontade
De me dares lírios
E rosas também.
II
Usas um vestido
Que é uma lembrança
Para o meu coração.
Usou-o outrora
Alguém que me ficou
Lembrada sem vista.
Tudo na vida
Se faz por recordações.
Ama-se por memória.
Certa mulher faz-nos ternura
Por um gesto que lembra a nossa mãe.
Certa rapariga faz-nos alegria
Por falar como a nossa irmã.
Certa criança arranca-nos da desatenção
Porque amámos uma mulher parecida com ela
Quando éramos jovens e não lhe falávamos.
Tudo é assim, mais ou menos,
O coração anda aos trambolhões.
Viver é desencontrar-se consigo mesmo.
No fim de tudo, se tiver sono dormirei.
Mas gostava de te encontrar e que falássemos.
Estou certo que simpatizaríamos um com o outro.
Mas se não nos encontrarmos, guardarei o momento
Em que pensei que nos poderíamos encontrar.
Guardo tudo,
Guardo as cartas que me escrevem,
Guardo até as cartas que não me escrevem —
Santo Deus, a gente guarda tudo mesmo que não queira,
E o teu vestido azulinho, meu Deus, se eu te pudesse atrair
Através dele até mim!
Enfim, tudo pode ser…
És tão nova — tão jovem, como diria o Ricardo Reis —
E a minha visão de ti explode literariamente,
E deito-me para trás na praia e rio como um elemental inferior,
Arre, sentir cansa, e a vida é quente quando o sol está alto.
Boa noite na Austrália!
~~
17 - 6 - 1929
Álvaro de Campos
In Poesia , Assírio & Alvim, ed. Teresa Rita Lopes, 2002

quarta-feira, 12 de outubro de 2016

Pergunta-me


Pergunta-me
se ainda és o meu fogo
se acendes ainda
o minuto de cinza
se despertas
a ave magoada
que se queda
na árvore do meu sangue
Pergunta-me
se o vento não traz nada
se o vento tudo arrasta
se na quietude do lago
repousaram a fúria
e o tropel de mil cavalos
Pergunta-me
se te voltei a encontrar
de todas as vezes que me detive
junto das pontes enevoadas
e se eras tu
quem eu via
na infinita dispersão do meu ser
se eras tu
que reunias pedaços do meu poema
reconstruindo
a folha rasgada
na minha mão descrente
Qualquer coisa
pergunta-me qualquer coisa
uma tolice
um mistério indecifrável
simplesmente
para que eu saiba
que queres ainda saber
para que mesmo sem te responder
saibas o que te quero dizer
~~
Mia Couto
In "Raiz de Orvalho"
Jacques Thibault

terça-feira, 11 de outubro de 2016

[Nada nos faça dor]

Nada nos faça dor,
Nada nos canse de olhar,
Vivemos no torpor
De observar e ignorar. 


Com o vago pensamento
De ir indo na corrente
Vivemos o momento
Irresponsavelmente.


27-6-1916

Fernando Pessoa
Criança, refugiada síria, encontrada morta 
numa praia grega em 2015.

quinta-feira, 6 de outubro de 2016

ANTÓNIO GUTERRES É O NOVO SECRETÁRIO GERAL DA ONU

VITÓRIA POR UNANIMIDADE E ACLAMAÇÃO

Foi o melhor candidato.  Imparável, serenamente convicto, venceu todas as etapas. Chegou ao topo porque é o mais bem preparado. Como Guilherme de Oliveira Martins escreve no perfil que dele traça, as suas principais características são:
- “excecionais qualidades de inteligência, de entrega, de generosidade e de trabalho”;
- “exigência e rigor”:

- “capacidade única de estudar os dossiês e de se preparar para os problemas que tem de enfrentar”, (…) “nos mais ínfimos pormenores”;
- “qualidades intelectuais inequívocas, “com grande sentido da prática e do concreto”;
- “memória prodigiosa”,(…) “a paixão e o conhecimento aprofundados da História do mundo.”;
- a aptidão para”  tomar decisões difíceis e imediatas com pleno conhecimento de causa, através do contacto direto com os responsáveis”; 
- “ a generosidade e a capacidade de entrega aos outros e a causas solidárias”
-“ a sua qualidade de militante social”.
Na imprensa internacional, o carácter "humanitário" de Guterres foi a qualidade mais citada.
"Fora do comum, carismático e humano".

O New York Times escreve: “Tem experiência, energia e o requinte diplomático” exigido ao cargo para o qual é eleito. A sua opção por “soluções com compaixão” poderá persuadir governos a aceitar refugiados, antevê o jornal norte-americano, que elogia o trabalho do antigo governante em Portugal e nas Nações Unidas. 
The Washington Post destaca Guterres como o “ veterano político católico”, que “Tem experiência, energia e o requinte diplomático” exigido ao cargo para o qual é eleito.”
The Guardian, sublinha que foi “uma decisão “surpreendentemente rápida” numa “rara demonstração de união” dos 15 países do Conselho de Segurança das Nações Unidas”.

Estão de parabéns António Guterres, Portugal e a diplomacia portuguesa.

mts

domingo, 2 de outubro de 2016

"Guia para viajar pelas florestas do sentido"

O que é o caminho?
anúncio de partida
escrito em folhas que o pó desenhou.
O que é a árvore?
lagoa verde cujas ondas são o vento.
O que é o vento?
alma que não quer
habitar o corpo.
O que é a morte?
carro que leva
do útero da mulher
ao útero da terra.
O que é a lágrima?
guerra perdida pelo corpo.
O que é o desespero?
descrição da vida na língua da morte.
O que é o horizonte?
espaço que se move sem parar.
O que é a coincidência?
fruto na árvore do vento
caindo entre as mãos
sem se saber.
O que é o não sentido?
doença que mais se propaga.
O que é a memória?
casa habitada só
por coisas ausentes.
O que é a poesia?
navios que navegam, sem portos.
O que é a metáfora?
asa aliviando
no peito das palavras.
O que é o fracasso?
musgo boiando no lago da vida.
O que é a surpresa?
pássaro
que escapou da gaiola da realidade.
O que é a história?
cego a tocar tambor.
O que é a sorte?
dado
na mão do tempo.
O que é a linha reta?
soma de linhas tortas
invisíveis.
O que é o umbigo?
meio caminho
entre
dois paraísos.
O que é o tempo?
veste que usamos
sem poder tirar.
O que é a melancolia?
anoitecer
no espaço do corpo.
O que é o sentido?
início do não sentido
e seu fim.

Adonis ( Ali Ahmad Said )
Grand Canyyon


sábado, 1 de outubro de 2016

Dia Internacional do Idoso (1 de outubro)

O Dia Internacional do Idoso, que se comemora anualmente a 1 de outubro, foi instituído em 1991 pela ONU, com o objetivo de sensibilizar a sociedade para as questões do envelhecimento, proteger, cuidar e acarinhar a população mais idosa.
~~
Velhinha

Se os que me viram já cheia de graça
Olharem bem de frente em mim,
Talvez, cheios de dor, digam assim:
“Já ela é velha! Como o tempo passa! ...”

Não sei rir e cantar por mais que faça!
Ó minhas mãos talhadas em marfim,
Deixem esse fio de oiro que esvoaça!
Deixem correr a vida até o fim!
Tenho vinte e três anos! Sou velhinha!
Tenho cabelos brancos e sou crente ...
Já murmuro orações ... falo sozinha ...
E o bando cor-de-rosa dos carinhos
Que tu me fazes, olho-os indulgente,
Como se fosse um bando de netinhos ...
~~
Florbela Espanca
In "Livro de Mágoas"


Gustav Klimt. As Três Idades da Mulher.1905.