Publicação em destaque

quarta-feira, 31 de agosto de 2016

Autorretrato

Ouve bem. Não sou o que tu pensas que eu sou,
nem sequer a imagem que desenhaste de mim.
Mas também não sou o que julgo ser.
Sou o traço de união
entre o que faço e o que desejaria fazer.
Sou as reticências que se acrescentam
ao que apenas se deixa adivinhar.
Quando olhares para mim não esperes dogmas,
porque só quando o instante decisivo
irromper com a urgência do inevitável
eu te direi o que vou fazer.
Mas faço-o sem hesitações
e, então, nada nem ninguém me detém.
Não me peças conselhos porque se o fizeres
estás a escolher antecipadamente o meu rumo
e esse sou eu quem o constrói ao caminhar.
desde que me comecei a olhar este mundo.
Sou livre. Por isso sou capaz de escolher
até quando a opção parece impossível
e sei assumir todas as consequências,
mesmo que por vezes a dor me cegue.

Perguntas-me o que significa o amor para mim.
Respondo-te que é tão importante como a liberdade
e que sem eles me é impossível viver.
Por isso me lanço algumas vezes
num barco sem remos nem motor,
rumo ao oceano sem limites.

Queres conhecer-me? Desiste.
Eu própria me desconheço
embora cultive o hábito doloroso
de mergulhar no fundo do meu poço
p'ra colher surpresas e também desilusões.
Mas, tem um pouco mais de paciência.
Imagina alguém que se consome
no incêndio que ela própria alimenta,
que é palco das emoções mais adversas, 
que em cada instante extravasa o seu próprio sentir,
que está sempre além da própria razão
e cujo sonho excede constantemente
as margens da contida realidade.
Imagina, por fim, alguém
que é albergue de todas as sensações,
que tenta pôr-se na pele de todas as refugiados,
sofrer todas as mágoas, rir todas as alegrias,
combater todas as injustiças,
estar ao lado de todos os oprimidos,
dar uma mão amiga a todos os pedintes,
compreender todos os marginais,
saltar, pular e brincar com as crianças,
dialogar com os adolescentes,
alguém capaz de pegar em armas
p'ra defender a liberdade e a democracia

Se é pouco o que te disse, procura tu o resto.
Não voltarei a falar-te de mim.
Prefiro sentir-me, sentir tudo.
Estou aqui à beira do abismo,
com olhos de águia para abarcar,
a imensidão do desfiladeiro.
Se não te apressas perdes-me.
É que estou sempre a partir.
Não levo malas comigo,
nem apanho um qualquer comboio.
Transporto tudo dentro de mim,
num excesso que por vezes transborda em solidão.
Não preciso de empurrões solícitos, 
nem das vossas vozes tão sensatas e frias.
Vou por onde quero, para onde quero,
pelo caminho acidentado que escolhi.
Se tropeçar e cair é comigo.
Enquanto tiver forças levantar-me-ei só.
Chego onde chegar. Que vos importa isso?

O hoje não me satisfaz.
O meu destino é o depois de amanhã.


Maria Teresa Sampaio

Yellow fall trees_Utah, Foto de Robert Hooper, para o National Geographic



terça-feira, 30 de agosto de 2016

Mãe

Fazes-me tanta falta, mãe. Mãe como nunca tive, que me desse afagos e não apenas ralhos. Queria poder descansar a cabeça no teu colo, desabafar, ouvir-ter e receber compreensão, sabedoria, amor. Como Antero de Quental me sinto:


"Mãe – que adormente este viver dorido,
E me vele esta noite de tal frio,
E com as mãos piedosas até o fio
Do meu pobre existir, meio partido…

Que me leve consigo, adormecido,
Ao passar pelo sítio mais sombrio…
Me banhe e lave a alma lá no rio
Da clara luz do seu olhar querido…

Eu dava o meu orgulho de homem – dava
Minha estéril ciência, sem receio,
E em débil criancinha me tornava,

Descuidada, feliz, dócil também,
Se eu pudesse dormir sobre o teu seio,
Se tu fosses, querida, a minha mãe!"

Antero de Quental
In Sonetos

Wlastimir Hofman.  (Polónia 1881-1970) .

domingo, 28 de agosto de 2016

[No silêncio das cousas tristes]

No silêncio das cousas tristes
     Ó minha amada,
Só tu para mim existes
     Abandonada
De tudo quanto é corpo e realidade
     Em tua alma; enfim
Sob a forma sentida da verdade
     Dentro em mim.


No sossego das horas mortas
     Ó minha amante
Só tu me apareces e exortas
     E o Instante
Vive do que em ti vale mais, querida,
     Do que o teu ser
O que em ti, cousa íntima e indefinida,
     Não saberá morrer.

Fernando Pessoa

[1910] 

In Poesia 1902-1917 , Assírio & Alvim, ed. Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas, Madalena Dine, 2005


Amor vivo

Amar! Mas dum amor que tenha vida…
Não sejam sempre tímidos arpejos,
Não sejam só delírios e desejos
Duma doida cabeça escandecida…

Amor que viva e brilhe! luz fundida
Que penetre o meu ser – e não só beijos
Dados no ar – delírios e desejos –
Meu amor … dos amores que têm vida…

Sim, vivo e quente! E já a luz do dia
Não virá dissipá-lo nos meus braços
Como névoa de vaga fantasia…

Nem murchará do Sol à chama erguida…
Pois que podem os astros dos espaços
Contra uns débeis amores … se têm vida?

Antero de Quental

In Sonetos

Michael Wilkinson

sábado, 27 de agosto de 2016

Porque

Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão.
Porque os outros têm medo mas tu não.

Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.

Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.

Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.


Sophia de Mello Breyner Andresn

1935 na República Checa. Fotografia de Frank Pekar

quinta-feira, 25 de agosto de 2016

[Cantas. E fica a vida suspensa]

Cantas. E fica a vida suspensa.
É como se um rio cantasse:
em redor é tudo teu;
mas quando cessa o teu canto
o silêncio é todo meu.

~~

Eugénio de Andrade

In As Mãos e os Frutos
 
Imagem: Andrea Paolini Merlo

Súplica final

Senhor: não peço mais que silêncio,o silêncio das noites de planície como enevoadas águas,
o silêncio dos montes quando a tarde acabou e as pedras
se afiam na friagem que é azul-celeste,
o silêncio do sol encarquilhando as folhas,
e o vento na areia depois de ter passado,
o silêncio das ondas ao longe espumejando tranquilas,
o silêncio das mãos e o dos olhos,
e o das aves negras que pairam nas alturas
de um céu silencioso e límpido. Não peço
mais que silêncio. O silêncio das ideias que deslizam
no tecto escorregadio da memória silente.
E o silêncio dos sonhos coloridos, e o dos outros
a preto e branco imagens desejadas
que não pensei que desejava e esqueço
ao querer lembrá-las. E o silêncio
dos sexos que se possuem sem uma palavra.
E o do amor também, tão silencioso esse,
que não sei quem amo.
Não peço mais. Afasta
de mim o estrondo: não o das cidades,
ou dos homens, das águas, do que estala
na memória ou penumbra das salas desertas.
Afasta de mim o estrondo com que a vida
se acabará contigo, num rasgar de súbito
em que ficarei inerte e silencioso. O estrondo
em que não ouvirei mais nada. 0 estrondo
em que não mexerei um dedo. 0 estrondo
em que serei desfeito. O estrondo
em que de olhos abertos alguém mos abrirá.
Senhor: não peço mais do que o silêncio do mundo,
o silêncio dos astros, o silêncio das coisas
que outros homens fizeram, e o das coisas
que eu próprio fiz. E o teu silêncio
de senhor que foi. Não peço mais.
Não é nada o que peço. Dá-me
o silêncio. Dá-me o que não fui:
silêncio (porque calei tanto):
o que não sou (pois que calo tanto):
o que hei-de ser (já que falar não adianta):
Silêncio.
Senhor: não peço mais.
~~
Jorge de Sena
In Peregrinatio ad Loca Infecta

"Wildfires near and far cast a haze over Montana’s Glacier National Park in this 2015 image. Photographed by Keith Ladzins, National Geographic Creative."

Grand Canyon. Foto de Alex Noriega, National Geographic.

sábado, 13 de agosto de 2016

Os fogos...

»As imagens transbordam fugitivas
E estamos nus em frente às coisas vivas.
Que presença jamais pode cumprir
O impulso que há em nós, interminável,
De tudo ser e em cada flor florir?»

Sophia de Mello Breyner Andresen

Lembrei-me deste poema a propósito da dor e perplexidade que sinto perante as imagens do nosso país a arder, das pessoas que tudo perderam em segundos e dos bombeiros, que a todos nós dão um exemplo maior de abnegação e verdadeira prática humanitária.
Nada sei. Apenas faço perguntas, porque me espanto. 

Há dezenas de anos que se verificam fogos nas épocas de maior calor, em Portugal. Os responsáveis políticos e os técnicos concordam que esta situação é insustentável. Ouve-se falar na premência de se apostar mais na prevenção dos fogos; em maior dotação de meios para os combater, nomeadamente aéreos; no reordenamento e gestão florestal; na limpeza das matas; no agravamento das penas para os incendiários. 
Há tanto tempo, senhores!

Sim. E depois? 

Se alguma coisa mudou, não chega ainda. 
Adquirir meios aéreos não é como ir ao supermercado, ouvi da boca de um governante hoje mesmo. Claro que não. Por quem nos tomam? Por tolos? Inevitavelmente vem-me à memória a compra dos submarinos, por Paulo Portas e o negócio das contrapartidas. Ora não teria sido muito mais ajuizado e útil comprar os tais aviões Canadair ou outros, que tanta falta nos fazem? Alguns países da Europa ajudam-nos nesta situação de extrema urgência. Até a Rússia. Marrocos, aqui tão perto, envia dois Canadair. Nós agradecemos, mas, e para a próxima? Porque, assim como estamos, bem podemos esperar por uma próxima. E nós havemos de chorar de novo. Os argumentos e os lamentos repetir-se-ão. A lembrança dos mortos, dos bens perdidos para sempre e que já não se conseguem recuperar porque as forças e os anos faltam; a memória da área ardida do território e da exaustão dos bombeiros deixarão de ser passado e o presente de novo nos queimará. A menos que…


Maria Teresa Sampaio


Fogos em Portugal. Imagens da NASA.11 de Agosto de 2016
Fogo na  ilha da Madeira captada pelo NASA Worldview.

Livro de Horas

Aqui, diante de mim,
Eu, pecador, me confesso
De ser assim como sou.
Me confesso o bom e o mau
Que vão ao leme da nau
Nesta deriva em que vou.
Me confesso
Possesso
Das virtudes teologais,
Que são três,
E dos pecados mortais,
Que são sete,
Quando a terra não repete
Que são mais.
Me confesso
O dono das minhas horas.
O das facadas cegas e raivosas
E o das ternuras lúcidas e mansas.
E de ser de qualquer modo
Andanças
Do mesmo todo.
Me confesso de ser charco
E luar de charco à mistura,
De ser a corda do arco
Que atira setas acima
E abaixo da minha altura.
Me confesso de ser tudo
Que possa nascer em mim.
De ter raízes no chão
Desta minha condição.
Me confesso de Abel e de Caim.
Me confesso de ser Homem.
De ser um anjo caído
Do tal céu que Deus governa;
De ser um monstro saído
Do buraco mais fundo da caverna.
Me confesso de ser eu.
Eu, tal e qual como vim
Para dizer que sou eu
Aqui, diante de mim!

~~

Miguel Torga
In O Outro Livro de Job

Depoimento

Coimbra, 15 de fevereiro de 1981.

De seguro,
Posso apenas dizer que havia um muro
E que foi contra ele que arremeti
A vida inteira.
Não. Nunca o contornei.
Nunca tentei
Ultrapassá-lo de qualquer maneira.

A honra era lutar
Sem esperança de vencer.
E lutei ferozmente noite e dia.
Apesar de saber
Que quanto mais lutava mais perdia
E mais funda sentia
A dor de me perder.

~~

Miguel Torga
In Diário XIII
I
Imagem: Memorial sobre o Mondego

sexta-feira, 12 de agosto de 2016

Miguel Torga nasceu há 109 anos

Miguel Torga, nome literário do médico Adolfo Correia da Rocha, nasceu há 109 anos, em São Martinho de Anta, Vila Real, a 12 de Agosto de 1907. Foi um dos mais importantes escritores do séc. XX português, proposto para o Nobel da Literatura em 1960, pela Universidade de Montpellier e novamente candidato em 1978. Escreveu todos os géneros literários, desde poesia a romance, passando pelo Diário ensaio, conto, teatro.
Profundamente democrata e humanista foi um rebelde contra todas as tiranias que grassaram na Europa e em particular em Portugal. Salazar prendeu-o no Limoeiro e no Aljube, proibiu a sua obra, demitiu-o sem qualquer justificação do Serviço de Saúde da Casa dos Pescadores da Figueira da Foz, proibiu-o de sair do país, mas não conseguiu vergá-lo. Torga era mais forte do que as grades da prisão, a sua dignidade maior do que as dificuldades financeiras e a sua voz falou mais alto que a Censura. O seu nome, reconhecido nacional e internacionalmente, encarnou também, em Portugal, o exemplo cívico, cultural e social da oposição ao regime salazarista e, já depois da Revolução de Abril, à inconsciência e à corrupção de certa classe política instalada.

Miguel Torga cumpriu, e disso deu testemunho na sua obra, um percurso interior de autoconhecimento apenas limitado pelo ocaso da aventura humana. 
Nunca pisou “um chão de segurança”, sacudido que foi como um barco “Pelas ondas raivosas do destino”. E, no final, como poeta, pôde dizer que valeu a pena “a dura realidade / Desta viagem trágico-terrena / Sempre batida pela tempestade.”


mts


sexta-feira, 5 de agosto de 2016

Rente à alma

Rente à alma tocas-me o corpo
e na maré-cheia do amor renasço
como esta madrugada que vejo
amanhecer da janela onde moram
recônditos todos os sonhos

  

5 de agosto de 2016

Maria Teresa Sampaio


Salvador Dali. Gala à janela.