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sábado, 31 de dezembro de 2016

Passagem de Ano


É a surpresa a envolver cada amanhã,
como  novelo embrulhado pelo tempo,
que nos atrai para novas marés de sonhos
e renovados desejos desde sempre bordados
com mãos-cheias de boas intenções.

Contam-se os dias para o final de cada ano
com a ansiedade de quem quer saltar
fronteiras e do lado de lá descobrir
um mundo melhor, num ímpeto de boa vontade.

Crianças grandes, que somos, queremos sempre
mais: paz, amor, saúde, prosperidade, justiça, sucesso
e sempre  tudo envolvido em muita felicidade,
imensa alegria, intenso júbilo e infinitas bênçãos.

No final nada de novo. Tudo se repete num
circular eterno retorno. Um ano acaba
e, um minuto depois, outro começa, alheio
à velha sabedoria do que atrás fica,
audaz e quase pueril na sua incontida ânsia
de tudo fazer melhor, sem repetir erros.

Por isso Te peço a radiosa Esperança
de acreditar que tudo é possível,
mesmo quando o negrume dos dias
parece uma estrada sem fim.

Peço-Te ainda forças para suportar
sem desespero toda a espécie de dores
que tiver de sofrer, sem nada amaldiçoar .

Dá-nos o sol dos tempos benditos
e que nós saibamos aproveitá-lo
para criar o alimento dos dias futuros,
para nos darmos as mãos fraternamente,
e para amarmos sempre como quem ama
pela primeira e única vez.

31 de dezembro de 2016
 Maria Teresa Sampaio 

segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

Num beijo

Das tuas e das minhas mãos
nascem gestos impensados de ternura.
Na concha da noite
no musgo suave dos dias
na madrugada das nossas vidas
ou no calor rubro do pôr do sol
modelamos o corpo do amor
com a alegria e o ardor primitivo   
do sol fecundando a terra.
No mais recôndito dos teus olhos
mergulho o meu ser  sedento
de ocultos mistérios a afundo-me
na subversiva voracidade de um beijo.
Com paixão transpomos o limiar
da entrega e apoderamo-nos da vida
como ondas do oceano  que nada
temem porque tudo superam.  

Amamos com a loucura
de um sentir lúcido.

Teresa Sampaio
Andrea Paolini Merlo


quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

O tempo e a vida

Passam velozes os dias
e eu no meu intenso modo de ser
quase ultrapasso  minutos horas e anos
sem me importar com o tempo
tão arbitrariamente medido.
O tempo que eu transcendo
porque a minha vida vai-se vivendo
independentemente de tudo
com poesia dedicação e aprendizagem.
E eu  alegre ou triste
rindo de mim própria ou das situações
gemendo com as dores que me habitam
nem parando para viver mais devagar
acabo por ver sempre o copo meio cheio
e por me sentir feliz por todos quantos
povoam com carinho  a minha vida.
Mas mais do que tudo sinto-me grata
pelos filhos que tenho: centro e raiz de tudo
o que de bom me acontece
luz cor primavera mar  e montanha
sonho que de semente se fez flor e fruto
minha terra e meu céu
meus únicos e verdadeiros grandes amores.

7 de dezembro de 2016
Maria Teresa Sampaio







sábado, 3 de dezembro de 2016

Amor

Não sei viver sem me perder
no claro fundo do teu olhar
que me agarra e me liberta
não sei viver sem as tuas mãos
que se me dão em vislumbres de ternura
em gestos vagamente pressentidos
como sonhos a nascer em botão
não sei viver sem a tua boca
o teu sorriso irónico e bondoso
os teus lábios como frutos polpudos
não sei viver  sem a tua sombra
sem a surpresa dos teus passos leves
sem a música das tuas palavras
apenas sussurradas ou talvez sonhadas
sem o teu delirante sentido de humor
sem o teu riso e as nossas gargalhadas

É tão simples afinal
não sei viver sem ti Amor.
*
3 de Dezembro de 2016
Maria Teresa Sampaio
Tony Chow  - The Passion 


quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

MORTE DE FERNANDO PESSOA

Fernando Pessoa fumava cerca de quatro maços de tabaco diariamente e bebia, bebia muito. Nos últimos tempos de sua vida as cólicas abdominais e os estados febris, por vezes intensos, eram cada vez mais frequentes. 
O médico avisara-o já que tinha de parar. Mas Pessoa não lhe deu ouvidos e prosseguiu o seu caminho alheado da terrível realidade, que funcionara como uma sentença a pairar sobre a sua vida, embora tantas vezes ele próprio tivesse escrito sobre a morte.
No dia 29 de novembro de 1935, ainda chamou o Sr. Manassés, barbeiro, que morava bem perto de si, na rua Coelho da Rocha, em Campo de Ourique, mas acabou por ser hospitalizado no Hospital de São Luís dos Franceses, no Bairro Alto, com uma crise hepática grave. Já na cama, pressentindo o fim, pediu papel e lápis para escrever as suas últimas palavras, na forma enigmática que lhe era tão peculiar. Não usou o português, mas sim um inglês literário:

”I know not what tomorrow wil bring”.

No dia seguinte, a 30 de novembro de 1935, Fernando Pessoa deixou-nos. Eram cerca das 20 horas.

Ocorrem-me as suas palavras proféticas: “Tornando-me assim, pelo menos um louco que sonha alto, pelo mais, não um só escritor, mas toda uma literatura, quando não contribuísse para me divertir, o que para mim já era bastante, contribuo talvez para engrandecer o universo, porque quem, morrendo, deixa escrito um verso belo deixou mais ricos os céus e a terra e mais emotivamente misteriosa a razão de haver estrelas e gente.” (“Aspectos” , Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966)

Fernando Pessoa foi a enterrar no Cemitério dos Prazeres, no dia 2 de dezembro de 1935. Luís de Montalvor discursou em nome dos sobreviventes do grupo do Orpheu. Fisicamente o Escritor deixara-nos, mas a verdadeira importância da sua obra ainda iria ser descoberta, reconhecida, estudada e traduzida para todo o mundo, até aos dias de hoje.

Fernando Pessoa era sensitivo e disso nos apercebemos em muitas dos seus escritos, como este do Livro do Desassossego em que diz:

“ Penso às vezes, com um deleite triste, que se um dia, num futuro a que eu já não pertença, estas frases, que escrevo, durarem com louvor, terei enfim a gente que me «compreenda», os meus, a família verdadeira para nela nascer e ser amado. Mas, longe de eu nela ir nascer, eu terei já morrido há muito. Serei compreendido só em efígie, quando a afeição já não compense a quem morreu a só desafeição que teve, quando vivo.
      Um dia talvez compreendam que cumpri, como nenhum outro, o meu dever-nato de intérprete de uma parte do nosso século; e, quando o compreendam, hão-de escrever que na minha época fui incompreendido, que infelizmente vivi entre desafeições e friezas, e que é pena que tal me acontecesse.”

É por isso que esta minha e vossa página se intitula “Fernando Pessoa: "Passo e fico, como o Universo."

Lisboa, 30 de novembro de 2016
Maria Teresa Sampaio
Última fotografia de Fernando Pessoa, aos 47 anos, no ano
da sua morte, 
em 1935,  tirada por Augusto Ferreira Gomes.

segunda-feira, 28 de novembro de 2016

Nasci para gostar de gostar

nasci para antever a luz
por detrás das nuvens mais escuras
para sondar o insondável
e perscrutar o que não é visível ao olhar
nasci para aprender a aprender
e descobrir que tudo está por descobrir
nasci para lutar em todos os momentos
pela liberdade e saboreá-la
com o insaciável desejo do fruto proibido
nasci para ser livre como um potro selvagem
que cavalga um mundo sem fronteiras
e sacode a mão que o quer subjugar
nasci para ser criança mãe e avó e novamente
criança na cristalina alegria dos risos gaiatos
no incansável jogo lúdico
do que se faz e desfaz e se volta a fazer
na fulgurante cumplicidade do amor
nos rarefeitos cumes do dever singular
e no espanto criador
de quem se perde e se acha
para  além de todos os limites

nasci para deixar que a vida
me aconteça livremente
não prevejo nem planeio
aprendo a aceitar o que é imutável
a contestar a guerra e as injustiças
a caminhar à beira do abismo
com a coragem solitária para
o transpor e conhecer o lado de lá

nasci para gostar de gostar

Maria Teresa Sampaio 
Claude Monet. Pôr do sol em Veneza








A rosa de Dali.

Esta é a rosa mais perfeita, de Salvador Dali, que escolhi para o meu aniversário.
Cumpre todos os requisitos:
- É apaixonante,
- É simultaneamente etérea.
- Não parece deste mundo;
- Paira acima de tudo, alegrias e tristezas.
- Nada parece afetá-la.
- Segue pelas nuvens rumo ao horizonte, onde tudo se relativiza.
- E ganha então um novo sentido mais espiritual.
Por isso gosto tanto desta rosa de Dali.

Salvador Dali

quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Um pouco de nada


Bom dia, amor.

Trago o sorriso da madrugada
preso nos lábios
para te dar.
Trago pétalas de uma saudade
na flor que busquei
para te dar.
Trago melodias de vento
enredadas nos cabelos
para te dar.
É pouco, eu sei,
mas, olha, trago-te ainda
o que apenas pressentes,
o lume do meu desejo,
o horizonte do meu amor,
o muito que sinto
e o imenso que sonho.

Bom dia, amor.

Toma este pouco de nada
em troca do infinito
que tu me dás.


Teresa Sampaio
 
Christian Schloe 


quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Subitamente


Aconteceste subitamente na neblina,
vieste como achado de espuma na praia-mar.
Dedilhaste no meu corpo
a música breve de uma guitarra
e bebeste nos meus lábios
a saliva salgada do amor.
Aquecemos a cal e a carne,
inundámos de seiva jovem
as raízes do dia
que morria nas nossas mãos.
Em silêncio ardemos
no lume excessivo
do verão a despedir-se
e, sem palavras,
possuímos o tempo
num abraço grande como
a nossa ânsia.

Teresa Sampaio
Passion by Irina Karkabi



domingo, 6 de novembro de 2016

As fontes

Um dia quebrarei todas as pontes
Que ligam o meu ser, vivo e total,
À agitação do mundo do irreal,
E calma subirei até às fontes.

Irei até às fontes onde mora
A plenitude, o límpido esplendor
Que me foi prometido em cada hora,
E na face incompleta do amor.

Irei beber a luz e o amanhecer,
Irei beber a voz dessa promessa
Que às vezes como um voo me atravessa,
E nela cumprirei todo o meu ser

*
Sophia de Mello Breyner Andresen


Chamo-te

Chamo-Te porque tudo está ainda no princípio
E suportar é o tempo mais comprido.
Peço-Te que venhas e me dês a liberdade,
Que um só de Teus olhares me purifique e acabe.
Há muitas coisas que não quero ver.
Peço-Te que sejas o presente.
Peço-Te que inundes tudo.
E que o Teu reino antes do tempo venha
E se derrame sobre a Terra
Em Primavera feroz precipitado.
*
Sophia de Mello Breyner Andresen

Ausência


Num deserto sem água
Numa noite sem lua
Num país sem nome
Ou numa terra nua
Por maior que seja o desespero
Nenhuma ausência é mais funda do que a tua.
*
Sophia de Mello Breyner Andresen
Sophia de Mello Breyner Andresen e Francisco Sousa Tavares, seu marido.

Com fúria e raiva


Com fúria e raiva acuso o demagogo
E o seu capitalismo das palavras
Pois é preciso saber que a palavra é sagrada
Que de longe muito longe um povo a trouxe
E nela pôs a sua alma confiada
De longe muito longe desde o início
O homem soube de si pela palavra
E nomeou a pedra a flor a água
E tudo emergiu porque ele disse
Com fúria e raiva acuso o demagogo
Que se promove à sombra da palavra
E da palavra faz poder e jogo
E transforma as palavras em moeda
Como se fez com o trigo e com a terra.
*
6 - 1974
Sophia de Mello Breyner Andresen

Observação : Lembrei-me, inevitavelmente, das eleições americanas. 

Dia de Sophia

Hoje é o dia de uma das nossas maiores poetas portuguesa de sempre: SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN nasceu há 97 anos na cidade do Porto.
....................................
[n. Porto,6-11- 1919 – m. Lisboa, 2-7-2004]
«A sua infância e adolescência passaram-se entre o Porto e Lisboa, onde frequentou o curso de Filologia Clássica. Após o casamento com o advogado Francisco de Sousa Tavares, fixa-se em Lisboa, passando a dividir a sua actividade entre a poesia e a intervenção cívica contra a ditadura de Salazar, que então dominava o país. As duas actividades não são, no entanto, separáveis: se, por um lado, foi candidata pela Oposição Democrática nas eleições legislativas de 1969, sócia fundadora da Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos e, após a Revolução de Abril de 1974, deputada à Assembleia Constituinte pelo Partido Socialista, a poesia ergue-se também como uma voz da liberdade, especialmente em O Livro Sexto.
Contemporânea de Jorge de Sena, Eugénio de Andrade, Alexandre O’Neill, Tomaz Kim, José Blanc de Portugal, Ruy Cinatti, António Ramos Rosa, David Mourão-Ferreira, fez parte da geração de Cadernos de Poesia (1940-42) e colaborou também na Távola Redonda (1950-54) e na Árvore (1951-53), o que a identifica com uma prática poética que afirma um ideal de modernidade, mas que nessa afirmação valoriza acima de tudo a busca do mistério poético, aí, e só aí, se inscrevendo um sistemático trabalho de depuração formal. Sophia é um dos expoentes de uma poesia onde o culto das técnicas de expressão só em função daquela busca e sua simultânea celebração ganha sentido, nunca enquanto mera representação do real como acontecera com a geração precedente que deu corpo ao ideal neo-realista, nem como mero jogo de intuições poéticas imediatas, como o foi em grande parte a poesia surrealista que igualmente se afirmou por esses anos. Nesse sentido, esta é, no seu equilíbrio de conceitos e procedimentos, uma poesia naturalmente humana e por isso clássica no seu modo de ser moderna.
Profundamente mediterrânica na sua tonalidade, a linguagem poética de Sophia de Mello Breyner denota uma sólida cultura clássica, onde se inscreve a sua paixão pela cultura grega como referente quase sempre presente e onde a relação do signo com o mundo circundante é uma relação de transparência e luminosidade. O ritmo, a construção melódica é expressão desse equilíbrio como o é da tensão — que por isso deixa de o ser — entre a vocação pura, emocional, e o seu modo reflectido, contido, de se escrever. A inspiração poética confunde-se, por outro lado, em Sophia, com o registo e o canto das coisas lisas e essenciais, um registo de imanência, e isso lhe confere uma espécie de magia. Luz, verticalidade e magia estão, aliás, quase sempre presentes na obra de Sophia: quer na obra poética, quer na importante obra para crianças que, inicialmente destinada aos seus cinco filhos, rapidamente se transformou num clássico da literatura infantil em Portugal, marcando sucessivas gerações de jovens leitores com títulos como O Rapaz de Bronze, A Fada Oriana ou A Menina do Mar.
Sophia é ainda tradutora para português de Anunciação a Maria, de Claudel, "Purgatório” da Commedia de Dante (com prefácio do Prof. Vieira de Almeida), Hamlet e Muito Barulho por Nada, de Shakespeare, Medeia, de Eurípedes, e Ser Feliz e Um Amigo, de Leit Kristianson; e traduziu para francês poemas de Camões, Cesário Verde, Mário de Sá-Carneiro e Fernando Pessoa.»
In Centro de Documentação de Autores Portugueses, 07/2004
............................................

PORQUE
Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão.
Porque os outros têm medo mas tu não.
Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.
Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.
Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.

Sophia de Mello Breyner Andresen


terça-feira, 25 de outubro de 2016

Vieste

Vieste.
Senti-te ainda longe
quando não eras esperado.
Só o vago sentimento de júbilo
absolutamente inexplicável
e o muito suave tremor no corpo
me anunciavam a tua vinda.

Vieste,
e a primavera nasceu súbita,
com o perfume das rosas
e o aroma dos frutos suaves,
nas agruras do inverno.

Vieste
como música
como lava
e os diques romperam-se
no tumulto dos beijos
na  quentura dos abraços.

Maria Teresa Sampaio
2016-10-25
Salvador Dali

No silêncio


No silêncio do teu nome
na noturna ausência da tua pele
inscrevem-se notas brancas
lancinantes como punhais
que abrem sulcos magoados
no rumor vago dos meus dias

Maria Teresa Sampaio
Pablo Picasso



sábado, 22 de outubro de 2016

Beijo

Não quero o primeiro beijo: 
basta-me 
O instante antes do beijo.


Quero-me
corpo ante o abismo,
terra no rasgão do sismo.

O lábio ardendo
entre tremor e temor,
o escurecer da luz
no desaguar dos corpos:
o amor
não tem depois.

Quero o vulcão
que na terra não toca:
o beijo antes de ser boca.

Mia Couto
In 'Tradutor de Chuvas'

'V-J Day in Times Square', fotografia de Alfred Eisenstaedt, retratando 
beijo de um marinheiro a uma enfermeira, no meio da multidão, que 
celebra o anúncio do fim da II Guerra Mundial, em 14 de agosto de 1945.

terça-feira, 18 de outubro de 2016

Nietzsche e Pessoa

Nietzsche e Pessoa – ensaios
Edição Bartholomew Ryan, Marta Faustino, Antonio Cardiello.
Tinta da China, 1.ª edição: fevereiro de 2016.

É uma obra muito importante que, em boa hora, foi editada, reunindo os ensaios de conhecidos e consagrados estudiosos de Pessoa. 

Tal como Richard Zenith escreve, também a mim causam admiração ”as coincidências entre um e outro”. À medida que avançava na leitura da obra de Pessoa, mais ou menos em simultâneo com o estudo de Nietzsche, comecei a aperceber-me de pontos comuns. A confirmação chegou quando o Professor Eduardo Lourenço primeiro escreveu sobre o tema, nos anos oitenta. Na realidade, até mesmo quando o poeta vitupera violentamente o filósofo, não consegue apagar as suas marcas. 

Explicita Antonio Cardiello que, para Nietzsche “O sobre-humano (Übermensch) é discípulo do deus Dionísio, por aceitar a vida em todas as suas manifestações, no prazer de se transformar, encarado como alternância da vida e da morte” e o Professor Eduardo Lourenço, referindo-se ao heterónimo Álvaro de Campos, diz-nos: “Na realidade, o poeta da ‘Ode Triunfal’ e da ‘Ode Marítima’ oscila constantemente entre a visão cruel de Nietzsche e o fraternalismo espiritualizante de Walt Whitman. 

É destacadamente na ‘Ode Triunfal’ que Álvaro de Campos tem em si «A fúria de todas as chamas, a raiva de todos os ventos, /A espuma furiosa de todos os rios, que se precipitam.» Canta o presente, como canta também o passado e o futuro, sem renegar nada do que disse ou fez, aceitando tudo o que foi, tudo o que é e tudo o que será:
«Quanto fui, quanto não fui, tudo isso eu sou.
Quanto quis, quanto não quis, tudo isso me forma.
Quanto amei ou deixei de amar é a mesma saudade em mim»

Trata-se de um rotundo e voluntarioso SIM à vida, uma poderosa afirmação de querer e de libertação. Nietzsche tinha-o dito pela boca de Zaratustra: “Poeta, decifrador de enigmas e redentor do acaso, ensinei-lhes a serem criadores de futuro e a libertar com a sua atividade criadora tudo o que foi. Salvar o passado no homem e transmutar tudo o que foi, até que a vontade declare: «mas eu queria que fosse assim! E é o que quererei de ora em diante!».
Zaratustra ama “aquele que tem a alma transbordante, a ponto de perder a consciência de si mesmo e nele carrega todas as coisas! Assim á a totalidade das coisas que causa a sua perda.” Álvaro de Campos sente tudo de todas as maneiras, [1] excessivamente, como um monte confuso de forças cheias de infinito. Tem em si o caos que Nietzsche considera necessário “para gerar uma estrela dançante”. Anseia ser todos e tudo. Transborda emoções. Pertence a tudo para pertencer mais intensamente a si próprio. Transcende-se para melhor conter em si o universo inteiro: 

«Quanto mais unificadamente diverso, dispersadamente atento,
Estiver, sentir, viver, for,
Mais possuirei a existência total do universo,
Mais completo serei pelo espaço inteiro fora.»

Maria Teresa Sampaio
2016 outubro 18











[1] “Afinal a melhor maneira de viajar é sentir”, in Poesia, Assírio & Alvim, ed. Teresa Rita Lopes.

sábado, 15 de outubro de 2016

Aniversário de Álvaro de Campos - Poema da Canção sobre a Esperança

15 de outubro
Aniversário de Álvaro de Campos
*****************************************************
Poema da Canção sobre a Esperança
I
Dá-me lírios, lírios,
E rosas também.
Mas se não tens lírios
Nem rosas a dar-me,
Tem vontade ao menos
De me dar os lírios
E também as rosas.
Basta-me a vontade,
Que tens, se a tiveres,
De me dar os lírios
E as rosas também,
E terei os lírios —
Os melhores lírios —
E as melhores rosas
Sem receber nada,
A não ser a prenda
da tua vontade
De me dares lírios
E rosas também.
II
Usas um vestido
Que é uma lembrança
Para o meu coração.
Usou-o outrora
Alguém que me ficou
Lembrada sem vista.
Tudo na vida
Se faz por recordações.
Ama-se por memória.
Certa mulher faz-nos ternura
Por um gesto que lembra a nossa mãe.
Certa rapariga faz-nos alegria
Por falar como a nossa irmã.
Certa criança arranca-nos da desatenção
Porque amámos uma mulher parecida com ela
Quando éramos jovens e não lhe falávamos.
Tudo é assim, mais ou menos,
O coração anda aos trambolhões.
Viver é desencontrar-se consigo mesmo.
No fim de tudo, se tiver sono dormirei.
Mas gostava de te encontrar e que falássemos.
Estou certo que simpatizaríamos um com o outro.
Mas se não nos encontrarmos, guardarei o momento
Em que pensei que nos poderíamos encontrar.
Guardo tudo,
Guardo as cartas que me escrevem,
Guardo até as cartas que não me escrevem —
Santo Deus, a gente guarda tudo mesmo que não queira,
E o teu vestido azulinho, meu Deus, se eu te pudesse atrair
Através dele até mim!
Enfim, tudo pode ser…
És tão nova — tão jovem, como diria o Ricardo Reis —
E a minha visão de ti explode literariamente,
E deito-me para trás na praia e rio como um elemental inferior,
Arre, sentir cansa, e a vida é quente quando o sol está alto.
Boa noite na Austrália!
~~
17 - 6 - 1929
Álvaro de Campos
In Poesia , Assírio & Alvim, ed. Teresa Rita Lopes, 2002

quarta-feira, 12 de outubro de 2016

Pergunta-me


Pergunta-me
se ainda és o meu fogo
se acendes ainda
o minuto de cinza
se despertas
a ave magoada
que se queda
na árvore do meu sangue
Pergunta-me
se o vento não traz nada
se o vento tudo arrasta
se na quietude do lago
repousaram a fúria
e o tropel de mil cavalos
Pergunta-me
se te voltei a encontrar
de todas as vezes que me detive
junto das pontes enevoadas
e se eras tu
quem eu via
na infinita dispersão do meu ser
se eras tu
que reunias pedaços do meu poema
reconstruindo
a folha rasgada
na minha mão descrente
Qualquer coisa
pergunta-me qualquer coisa
uma tolice
um mistério indecifrável
simplesmente
para que eu saiba
que queres ainda saber
para que mesmo sem te responder
saibas o que te quero dizer
~~
Mia Couto
In "Raiz de Orvalho"
Jacques Thibault

terça-feira, 11 de outubro de 2016

[Nada nos faça dor]

Nada nos faça dor,
Nada nos canse de olhar,
Vivemos no torpor
De observar e ignorar. 


Com o vago pensamento
De ir indo na corrente
Vivemos o momento
Irresponsavelmente.


27-6-1916

Fernando Pessoa
Criança, refugiada síria, encontrada morta 
numa praia grega em 2015.

quinta-feira, 6 de outubro de 2016

ANTÓNIO GUTERRES É O NOVO SECRETÁRIO GERAL DA ONU

VITÓRIA POR UNANIMIDADE E ACLAMAÇÃO

Foi o melhor candidato.  Imparável, serenamente convicto, venceu todas as etapas. Chegou ao topo porque é o mais bem preparado. Como Guilherme de Oliveira Martins escreve no perfil que dele traça, as suas principais características são:
- “excecionais qualidades de inteligência, de entrega, de generosidade e de trabalho”;
- “exigência e rigor”:

- “capacidade única de estudar os dossiês e de se preparar para os problemas que tem de enfrentar”, (…) “nos mais ínfimos pormenores”;
- “qualidades intelectuais inequívocas, “com grande sentido da prática e do concreto”;
- “memória prodigiosa”,(…) “a paixão e o conhecimento aprofundados da História do mundo.”;
- a aptidão para”  tomar decisões difíceis e imediatas com pleno conhecimento de causa, através do contacto direto com os responsáveis”; 
- “ a generosidade e a capacidade de entrega aos outros e a causas solidárias”
-“ a sua qualidade de militante social”.
Na imprensa internacional, o carácter "humanitário" de Guterres foi a qualidade mais citada.
"Fora do comum, carismático e humano".

O New York Times escreve: “Tem experiência, energia e o requinte diplomático” exigido ao cargo para o qual é eleito. A sua opção por “soluções com compaixão” poderá persuadir governos a aceitar refugiados, antevê o jornal norte-americano, que elogia o trabalho do antigo governante em Portugal e nas Nações Unidas. 
The Washington Post destaca Guterres como o “ veterano político católico”, que “Tem experiência, energia e o requinte diplomático” exigido ao cargo para o qual é eleito.”
The Guardian, sublinha que foi “uma decisão “surpreendentemente rápida” numa “rara demonstração de união” dos 15 países do Conselho de Segurança das Nações Unidas”.

Estão de parabéns António Guterres, Portugal e a diplomacia portuguesa.

mts

domingo, 2 de outubro de 2016

"Guia para viajar pelas florestas do sentido"

O que é o caminho?
anúncio de partida
escrito em folhas que o pó desenhou.
O que é a árvore?
lagoa verde cujas ondas são o vento.
O que é o vento?
alma que não quer
habitar o corpo.
O que é a morte?
carro que leva
do útero da mulher
ao útero da terra.
O que é a lágrima?
guerra perdida pelo corpo.
O que é o desespero?
descrição da vida na língua da morte.
O que é o horizonte?
espaço que se move sem parar.
O que é a coincidência?
fruto na árvore do vento
caindo entre as mãos
sem se saber.
O que é o não sentido?
doença que mais se propaga.
O que é a memória?
casa habitada só
por coisas ausentes.
O que é a poesia?
navios que navegam, sem portos.
O que é a metáfora?
asa aliviando
no peito das palavras.
O que é o fracasso?
musgo boiando no lago da vida.
O que é a surpresa?
pássaro
que escapou da gaiola da realidade.
O que é a história?
cego a tocar tambor.
O que é a sorte?
dado
na mão do tempo.
O que é a linha reta?
soma de linhas tortas
invisíveis.
O que é o umbigo?
meio caminho
entre
dois paraísos.
O que é o tempo?
veste que usamos
sem poder tirar.
O que é a melancolia?
anoitecer
no espaço do corpo.
O que é o sentido?
início do não sentido
e seu fim.

Adonis ( Ali Ahmad Said )
Grand Canyyon