A Polónia é um caso paradoxal
entre os países ocupados pelas forças nazis. Dilacerada pelos colapsos que se
têm verificado ao longo da sua história e por reconstruções que assentam
invariavelmente num nacionalismo alicerçado no apoio indefectível da igreja
católica, a Polónia continua, ainda assim, em tempo de paz, a padecer de
angústias identitárias bem enraizadas na sua memória coletiva.
O senado polaco aprovou, no dia
31 de janeiro de 2018, uma lei que proíbe a menção de “campos de morte
polacos”, “campos de extermínio polacos” e “campos de concentração polacos”,
sob pena de quem a infringir ter de pagar pesadas multas e até ir parar à
prisão por um período que pode ir até aos três anos. Se pode ser compreensível o esforço de correção
terminológica, sobretudo porque tais campos, como aliás todos sabem, apesar de
situados na Polónia ocupada durante a II Guerra Mundial, eram de factos nazis,
já a tolerância se esvai por completo quando nos apercebemos que a mesma lei proíbe
igualmente qualquer acusação contra “o Estado polaco, ou a nação polaca, de
responsabilidade ou cumplicidade nos crimes cometidos pelo Terceiro Reich
alemão.”
A Polónia foi um dos países
europeus que mais sofreu com a invasão das tropas de Hitler (a que se seguiu a
ocupação soviética), tendo morrido mais de seis milhões de polacos, dos quais
três milhões eram judeus. O país foi completamente esventrado e fragmentado
para servir os apetites imperialistas de Hitler e de Estaline, mas não houve,
como em França, um governo fantoche e colaboracionista com o Reich.
O Yad Vashem, centro mundial da
memória do Holocausto, (em Jerusalém) estima que entre 30 mil e 35 mil judeus —
cerca de 1% dos judeus polacos — foram salvos por cidadãos polacos e, por isso,
prestou homenagem com o título honorífico de "Justos entre as Nações"
a mais de 6700 desses salvadores, o maior número de um só país.
Tudo isto é verdade, mas é apenas
uma parte da verdade. A outra parte, aquela que desde há décadas os sucessivos
governos pretendem ocultar sob a máscara da tolerância polaca é, afinal, a de
um antissemetismo ultraconservador e católico em que a responsabilidade histórica
e secular do clero polaco é determinante na difusão da judeofobia, não podendo,
moralmente, ficar isento de culpa na realização de pogroms pelo povo, antes, durante e depois do final da II Guerra
Mundial. “A rua tornou-se um elo entre
os antissemitas polacos e os hitlerianos”, afirmou o etnólogo Emanuel
Ringelblum, que verificou como na sua própria sociedade, particularmente em
Varsóvia, entre outubro de 1939 e novembro de 1940, recrudescia a extrema violência contra os judeus. Esta
ideia foi partilhada por Jan Karsky no seu relatório de Fevereiro para o
governo polaco no exílio: “a nação odeia o seu inimigo mortal mas a questão
judaica cria de certo modo uma plataforma estreita onde se encontram de acordo
[sublinhado por Karski] os alemães e uma grande parte da sociedade polaca”.
Também num telegrama enviado para Londres, em 21 de setembro de 1941, já depois
da entrada em ação dos famigerados Eisatzgruppen, o general Grot-Rowecki (chefe
das forças armadas do interior (AK – movimento da resistência polaca), pedia ao
governo polaco no exílio que fosse “levado em conta, como facto perfeitamente
estabelecido, que a maioria do país mostra disposições antissemitas”.
O mito medieval da demonização dos
judeus, considerados agentes de Satanás, foi alimentado pela hierarquia
dominante da Igreja Católica polaca, que pregava a ideia do povo judeu como deísta,
antes, durante e após o final da II Guerra Mundial. O medo do estranho, do
diferente, das forças ocultas serviu perfeitamente os desígnios nacionalistas e
fortemente identitários do poder político e religioso, aliados na reconstrução
de uma Polónia homogénea, que se fechou sobre si própria, e vê nos judeus (também
nos ciganos e nos homossexuais) inimigos do reforço e coesão do Estado polaco. Ao
binómio ser polaco é ser católico, o oposto continua igualmente verdadeiro: ser
judeu é sinónimo de antinacional, com todas as consequências negativas da
estigmatização, incluindo a segregação, na lógica do apartheid e da exclusão.
A ideia da punição, o furor
legalista e vindicativo que o senado polaco se arroga agora não é novidade. Já
no final dos anos 60 se tentava isentar a Polónia da suspeita de antissemitismo.
Através de uma censura eficaz, aliada à propaganda oficial ultra nacionalista, antissemita
e xenófoba, pretendia-se apagar qualquer especificidade da shoa, inflacionando o número de judeus salvos por polacos e, em
última análise, levando a cabo uma tentativa de expurgar de toda essência
judaica as vítimas do genocídio.
Se não deve ser esquecido o papel
da Resistência Polaca no apoio que deu à revolta do Gueto de Varsóvia, nem a
ajuda abnegada de tantos polacos que, sob pena de morte, socorreram os seus
vizinhos judeus, também não deve, de forma nenhuma, ser branqueado o
antissemitismo virulento que continuou a manifestar-se mesmo depois do final da
guerra. De acordo com Paul Zawadzki ( professor de Ciências Sociais e de Filosofia
Política na Universidade de Paris) calcula-se que entre 1944 e 1947 tenham sido
assassinados entre 1500 a 2000 judeus. Eclodiram vários pogroms, nomeadamente o de o de Cracóvia, em 11 de Agosto de 1945,
o de Parczew, a 5 de fevereiro de 1946 e o de Kielce, a 4 de julho do mesmo
ano, tendo morrido neste último 42 judeus. Não faltam testemunhos de
assassinatos, por todo o território, de sobreviventes judeus ― indivíduos
isolados, grupos ou famílias ― que
procuravam regressar aos lugares onde tinham as suas habitações, para recuperar
as suas oficinas, ou o que poderia ainda restar dos seus bens. Uma intensa
emigração judaica seguiu-se a toda esta onda antissemita, cerca de 100 mil
judeus fugiram do país e entre aqueles que ficaram, o instinto de
autopreservação levava-os a não revelarem a sua certidão de nascimento, a
ocultarem as suas origem e hábitos e, frequentemente, a mudarem de nome.
Os folhetos e brochuras
antissemitas continuarem a publicar-se, foram profanados cemitérios judeus, a
sinagoga de Lodz foi invadida e rasgados os livros sagrados e as palavras de ordem em murais atingiram uma
agressividade inaudita, como a que se lia no monumento de Umschlgplatz, no
verão de 1990: “Um bom judeu é um judeu morto”. O termo judeu continua a ter
conotações negativas e injuriosas, sendo frequentemente aplicado como um
epíteto contra um adversário.
O arianismo e por oposição o
judaísmo não são conceitos despidos de sentido na Polónia atual. Em novembro de
2017, cerca de 60 mil polacos celebraram o dia da independência, numa
manifestação em que ostentaram símbolos fascistas, gritaram palavras de ordem
xenófobas e racistas, por uma “Polónia pura, Polónia branca e de sangue limpo”,
numa clara alusão ao que era conhecido como “essa infeliz categoria de sangue
misturado”, resultante dos casamentos mistos com judeus. Segundo a Associated
Press, numa das faixas exibida pelos manifestantes lia-se “Por uma irmandade
entre as nações brancas da Europa, “Deus, honra, pátria”, “Glória aos nossos
heróis”, “Morte aos inimigos da pátria” e “Queremos Deus”, que era o lema do
ano. O antissemitismo já não foi apenas a ideia prevalecente, uma vez que a ele
se juntou a islamofobia.
Houve alguma manifestação de
desconforto por parte das autoridades? Não, pelo contrário, o ministro do
Interior Mariusz Blaszak mostrou abertamente o seu agrado, dizendo que era “uma
coisa bonita de se ver”.
A atual iniciativa legislativa
não surge, portanto, desgarrada. Insere-se no atribulado contexto histórico,
religioso e sociopolítico polaco.
A Polónia parece ter perdido a
serenidade e também a memória.
…
Maria Teresa Sampaio