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segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

A Polónia perdeu a memória?

A Polónia é um caso paradoxal entre os países ocupados pelas forças nazis. Dilacerada pelos colapsos que se têm verificado ao longo da sua história e por reconstruções que assentam invariavelmente num nacionalismo alicerçado no apoio indefectível da igreja católica, a Polónia continua, ainda assim, em tempo de paz, a padecer de angústias identitárias bem enraizadas na sua memória coletiva.
O senado polaco aprovou, no dia 31 de janeiro de 2018, uma lei que proíbe a menção de “campos de morte polacos”, “campos de extermínio polacos” e “campos de concentração polacos”, sob pena de quem a infringir ter de pagar pesadas multas e até ir parar à prisão por um período que pode ir até aos três anos. Se  pode ser compreensível o esforço de correção terminológica, sobretudo porque tais campos, como aliás todos sabem, apesar de situados na Polónia ocupada durante a II Guerra Mundial, eram de factos nazis, já a tolerância se esvai por completo quando nos apercebemos que a mesma lei proíbe igualmente qualquer acusação contra “o Estado polaco, ou a nação polaca, de responsabilidade ou cumplicidade nos crimes cometidos pelo Terceiro Reich alemão.”
A Polónia foi um dos países europeus que mais sofreu com a invasão das tropas de Hitler (a que se seguiu a ocupação soviética), tendo morrido mais de seis milhões de polacos, dos quais três milhões eram judeus. O país foi completamente esventrado e fragmentado para servir os apetites imperialistas de Hitler e de Estaline, mas não houve, como em França, um governo fantoche e colaboracionista com o Reich.
O Yad Vashem, centro mundial da memória do Holocausto, (em Jerusalém) estima que entre 30 mil e 35 mil judeus — cerca de 1% dos judeus polacos — foram salvos por cidadãos polacos e, por isso, prestou homenagem com o título honorífico de "Justos entre as Nações" a mais de 6700 desses salvadores, o maior número de um só país.
Tudo isto é verdade, mas é apenas uma parte da verdade. A outra parte, aquela que desde há décadas os sucessivos governos pretendem ocultar sob a máscara da tolerância polaca é, afinal, a de um antissemetismo ultraconservador e católico em que a responsabilidade histórica e secular do clero polaco é determinante na difusão da judeofobia, não podendo, moralmente, ficar isento de culpa na realização de pogroms pelo povo, antes, durante e depois do final da II Guerra Mundial.  “A rua tornou-se um elo entre os antissemitas polacos e os hitlerianos”, afirmou o etnólogo Emanuel Ringelblum, que verificou como na sua própria sociedade, particularmente em Varsóvia, entre outubro de 1939 e novembro de 1940, recrudescia  a extrema violência contra os judeus. Esta ideia foi partilhada por Jan Karsky no seu relatório de Fevereiro para o governo polaco no exílio: “a nação odeia o seu inimigo mortal mas a questão judaica cria de certo modo uma plataforma estreita onde se encontram de acordo [sublinhado por Karski] os alemães e uma grande parte da sociedade polaca”. Também num telegrama enviado para Londres, em 21 de setembro de 1941, já depois da entrada em ação dos famigerados Eisatzgruppen, o general Grot-Rowecki (chefe das forças armadas do interior (AK – movimento da resistência polaca), pedia ao governo polaco no exílio que fosse “levado em conta, como facto perfeitamente estabelecido, que a maioria do país mostra disposições antissemitas”.
O mito medieval da demonização dos judeus, considerados agentes de Satanás, foi alimentado pela hierarquia dominante da Igreja Católica polaca, que pregava a ideia do povo judeu como deísta, antes, durante e após o final da II Guerra Mundial. O medo do estranho, do diferente, das forças ocultas serviu perfeitamente os desígnios nacionalistas e fortemente identitários do poder político e religioso, aliados na reconstrução de uma Polónia homogénea, que se fechou sobre si própria, e vê nos judeus (também nos ciganos e nos homossexuais) inimigos do reforço e coesão do Estado polaco. Ao binómio ser polaco é ser católico, o oposto continua igualmente verdadeiro: ser judeu é sinónimo de antinacional, com todas as consequências negativas da estigmatização, incluindo a segregação, na lógica do apartheid e da exclusão.
A ideia da punição, o furor legalista e vindicativo que o senado polaco se arroga agora não é novidade. Já no final dos anos 60 se tentava isentar a Polónia da suspeita de antissemitismo. Através de uma censura eficaz, aliada à propaganda oficial ultra nacionalista, antissemita e xenófoba, pretendia-se apagar qualquer especificidade da shoa, inflacionando o número de judeus salvos por polacos e, em última análise, levando a cabo uma tentativa de expurgar de toda essência judaica  as vítimas  do genocídio.
Se não deve ser esquecido o papel da Resistência Polaca no apoio que deu à revolta do Gueto de Varsóvia, nem a ajuda abnegada de tantos polacos que, sob pena de morte, socorreram os seus vizinhos judeus, também não deve, de forma nenhuma, ser branqueado o antissemitismo virulento que continuou a manifestar-se mesmo depois do final da guerra. De acordo com Paul Zawadzki ( professor de Ciências Sociais e de Filosofia Política na Universidade de Paris) calcula-se que entre 1944 e 1947 tenham sido assassinados entre 1500 a 2000 judeus. Eclodiram vários pogroms, nomeadamente o de o de Cracóvia, em 11 de Agosto de 1945, o de Parczew, a 5 de fevereiro de 1946 e o de Kielce, a 4 de julho do mesmo ano, tendo morrido neste último 42 judeus. Não faltam testemunhos de assassinatos, por todo o território, de sobreviventes judeus ― indivíduos isolados, grupos ou famílias ―  que procuravam regressar aos lugares onde tinham as suas habitações, para recuperar as suas oficinas, ou o que poderia ainda restar dos seus bens. Uma intensa emigração judaica seguiu-se a toda esta onda antissemita, cerca de 100 mil judeus fugiram do país e entre aqueles que ficaram, o instinto de autopreservação levava-os a não revelarem a sua certidão de nascimento, a ocultarem as suas origem e hábitos e, frequentemente, a mudarem de nome.
Os folhetos e brochuras antissemitas continuarem a publicar-se, foram profanados cemitérios judeus, a sinagoga de Lodz foi invadida e rasgados os livros sagrados  e as palavras de ordem em murais atingiram uma agressividade inaudita, como a que se lia no monumento de Umschlgplatz, no verão de 1990: “Um bom judeu é um judeu morto”. O termo judeu continua a ter conotações negativas e injuriosas, sendo frequentemente aplicado como um epíteto contra um adversário.
O arianismo e por oposição o judaísmo não são conceitos despidos de sentido na Polónia atual. Em novembro de 2017, cerca de 60 mil polacos celebraram o dia da independência, numa manifestação em que ostentaram símbolos fascistas, gritaram palavras de ordem xenófobas e racistas, por uma “Polónia pura, Polónia branca e de sangue limpo”, numa clara alusão ao que era conhecido como “essa infeliz categoria de sangue misturado”, resultante dos casamentos mistos com judeus. Segundo a Associated Press, numa das faixas exibida pelos manifestantes lia-se “Por uma irmandade entre as nações brancas da Europa, “Deus, honra, pátria”, “Glória aos nossos heróis”, “Morte aos inimigos da pátria” e “Queremos Deus”, que era o lema do ano. O antissemitismo já não foi apenas a ideia prevalecente, uma vez que a ele se juntou a islamofobia.
Houve alguma manifestação de desconforto por parte das autoridades? Não, pelo contrário, o ministro do Interior Mariusz Blaszak mostrou abertamente o seu agrado, dizendo que era “uma coisa bonita de se ver”.
A atual iniciativa legislativa não surge, portanto, desgarrada. Insere-se no atribulado contexto histórico, religioso e sociopolítico polaco.
A Polónia parece ter perdido a serenidade e também a memória.  
Maria Teresa Sampaio 




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