Para a minha netinha Adriana: passagem de testemunho.
Não sei, ainda, se consigo escrever sobre o 25 de Abril.
Naqueles tempos não escrevia nem lia, vivia.
Foi exatamente essa intensidade do viver, que me tem coibido de descrevê-lo.
Soube cedo, no dia 25 de Abril, que havia um movimento revolucionário de tropas. Faltava ter a certeza que era de esquerda e não da direita de Kaúlza de Arriaga.
O primeiro comunicado lido pela Rádio, anunciava ”Aqui posto de comando das Forças Armadas”. O resto tirou qualquer dúvida.
Deixei os meus filhos, pequeninos, com a minha mãe e assaltei, literalmente, as ruas de Lisboa. Ainda me atrevi a levar o carro, para chegar mais depressa à Baixa, deixei-o na Rua Nova do Almada e aí ficou, durante alguns dias, sem que lhe acontecesse alguma coisa. Não havia multas. Não se viam polícias. Só militares. Segui-os para todo o lado, comprei-lhes sandes e tabaco, num raro café aberto no Chiado e tive a incomparável, a inusitada alegria de ver Marcelo Caetano deixar o Quartel do Carmo, a caminho do exílio.
Era o fim do regime ditatorial que durante 48 anos nos tinha oprimido. Portugal renascia.
Gritávamos em uníssono, “fascismo nunca mais”. As palavras de ordem surgiam espontaneamente, sem prévio arranjo.
E eu senti-me parte integrante de uma imensa massa humana que se deslocava para todos os lados, de sorriso largo no rosto, incrédula, palpitante.
Abracei tanta gente que não conhecia e nunca mais vi. Caíamos nos braços uns dos outros e, pelo menos naqueles dias, todos éramos amigos e solidários.
Ri e chorei, tantas vezes, de alegria, de pura felicidade.
Ainda agora, que estou a escrever, sorrio e as lágrimas reaparecem. Há sentimentos que não se perdem. Ficam guardados dentro de nós, até, um dia, acordarem.
De repente, o sol tinha nascido para todos nós.
As emoções que vivi nesse dia, transparente e puro, e nos dias que se seguiram, são absolutas, excecionais, indizíveis.
Subitamente os sonhos longínquos, amordaçados, as palavras proibidas soltaram-se e o sabor primeiro, fundamental da LIBERDADE incendiou cada momento da minha vida. Era um sentimento tão em botão, tão incandescente que apenas sei dizê-lo através de Fernando Pessoa: “Não sente a liberdade quem nunca viveu constrangido”.
Integrei todas as manifestações, gritei todas as palavras de ordem, que nasciam espontaneamente e logo se espraiavam, infringi todas as normas de trânsito e até virei em sentido contrário em plena Av. da Liberdade. Não havia sinais, ou, se havia, não os víamos. E, estranhamente, não me lembro de ver acidentes.Depois, o tempo passou com uma velocidade que já nem nos surpreendia. Tínhamos apanhado rapidamente o ritmo.Fui esperar Mário Soares e Álvaro Cunhal.Distribuí cravos vermelhos por todos os caminhos e tudo se passava como se fosse irreal, como se estivéssemos a viver um filme. Nenhum sonho, alguma vez, poderia ter consubstanciado esta realidade que me ultrapassava a cada instante.
Eu vivia vertiginosamente, com aquela intensidade de quem quer apanhar o futuro já.
Eu vivia vertiginosamente, com aquela intensidade de quem quer apanhar o futuro já.
Ver a libertação dos presos de Caxias, marchar num 1.º de Maio verdadeiramente irrepetível, assistir ao nascimento das Comissões de Moradores, dos Conselhos de Aldeia e da Reforma Agrária, acompanhar o Movimento das Forças Armadas de norte a sul do país nem se explica. O tempo não chega. A minha vida toda não basta para contar o que vi e o que senti.
Ah, e como vivi!
Vivi muito.
Senti muito.
Emocionei-me muito.
Ainda hoje canto como Violeta Parra: “gracias a la vida, que me há dado tanto”.
Tudo foi um excesso colorido onde cabíamos todos.
Tínhamos conquistado palmo a palmo a LIBERDADE.
Os meus filhos já podiam crescer livres e o Pedro nunca iria para a guerra colonial.
A PIDE nunca mais voltaria a revistar a nossa casa e nós não voltaríamos a ser presos.
A Pátria já não era lugar de exílio.
Portugal era uma terra nova, onde brotavam todas as experiências.
Umas germinaram, outras não.
Ficou a LIBERDADE.
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Maria Teresa Sampaio
Cipriano Dourado