Na idade em que muitos rapazes andavam no liceu ou gozavam a
juventude ele começou a lutar pela vida.
Pedalava muitos quilómetros de bicicleta desde casa, na sua aldeia beirã, para
o emprego na cidade. Cedo descobriu a vocação. Veio para Lisboa continuando
sempre a trabalhar no mesmo ramo, como alfaiate de senhoras. Em pouco tempo montou
o seu próprio negócio na Baixa lisboeta. Não esquecia nunca os pais, que amparava
e apoiava devotadamente. Era um bom filho e nunca esqueceu as suas origens.
Apaixonou-se por uma jovem mulher muito bela com quem se
casou e ambos tiveram uma menina, filha única.
Em poucos anos alcançou grande sucesso e um lugar cimeiro na
alta-costura, na década de 60 e nos primeiros anos da de 70 em Portugal. Era
unanimemente considerado um “artista”, porque não só criou como inovou. Pôs
tudo quanto era no mínimo que fazia. Esta era uma faceta dominante da sua
personalidade e contudo tinha outras que o engrandeciam, como a generosidade e
uma apurada sensibilidade. Quem precisasse de ajuda podia contar com ele,
desinteressadamente. Era um bom amigo e querido por todos. Conhecia muita
gente, falava com todos, sem distinção, do mais humilde ao mais abastado e
poderoso, sobre os mais diversos assuntos. Vivia intensamente, sorvia cada
momento, saboreando a vida com prazer. Era capaz de súbitas tempestades, que se
desvaneciam tão depressa como tinham aparecido, como quando o sol rompe as
nuvens e tudo se ilumina. Amava muito a mulher, mas como “bon vivant” era também
boémio. Quando vinha tarde para casa, o que acontecia frequentemente, não se
esquecia de ir beijar a filha à cama e aconchegar-lhe a roupa.
Tinha um sentido de humor radiante, uma graça genuína e a gargalhada fácil, que
todos contagiava. Brincava com as situações, caricaturando-as com uma veia
cómica singular. A filha deleitava-se com aqueles folguedos e se a mãe, com
severidade, a repreendia por estar a rir à mesa, então é que as gargalhadas
estalavam irreprimíveis.
Parecia que deslizava, uns centímetros acima do solo, dançando com leveza e
mestria. A filha, a quem ensinara, cedo, a dançar adorava ver o par que o pai e
a mãe formavam no tango. Era um casal elegante, constituído por duas pessoas,
muito diferentes mas que se complementavam e, juntos, impunham a moda do seu
tempo.
O rapazinho audacioso que se lançara à aventura, de Santar para Viseu e depois
para Lisboa tornou-se famoso, mas conservou sempre a facilidade no trato e uma
simplicidade cativante.
Quando a filha, muito jovem, ainda na universidade, mas já
com dois filhos pequenos, atravessou a pior fase da sua vida, ele
telefonava-lhe todas as noites para a apoiar e lhe dizer que a amava, que vivia
para ela e para os seus netos.
Naquele sábado de novembro, do agitado ano de 1975 entrou no
seu quarto do hospital da CUF, acompanhado da filha, conversou sobre o
aniversário dela, que era daí a alguns dias e fumou um cigarro, aparentemente despreocupado, como se não
fosse submetido a uma cirurgia no dia seguinte.
Ninguém dissera àquele pai e àquela filha, tão unidos e
cúmplices, o que verdadeiramente se passava. Nenhum deles suspeitava que, num
ápice, tudo deixaria de ser como tinha sido até então. Nenhum deles estava
preparado para o que se iria seguir.
Dilacerado pelas dores, quando veio do bloco operatório, ele agarrava o braço da filha,
implorando-lhe a ajuda, que ela, desesperada, não lhe podia dar.
Nesse domingo ele partiu para sempre.
Chamava-se Sérgio Sampaio, tinha 56 anos e era o meu Pai.
Numa carta que me escreveu, e que guardo como uma relíquia, disse: Eu vivo-te, filha. Esta expressão quase poética, quase filosófica definiu, de forma cristalina, o seu amor ilimitado por mim e perdurou no meu coração para sempre.
Como o meu pai, tenho amado e vivido também os meus filhos.
Naquele distante mês de novembro tudo se desmoronou. Aprendi que não vale a pena fazer projetos. Tenho vivido a minha vida o melhor que posso, como ela se vai apresentando em cada dia, em cada momento.
Não sou saudosista nem me prendo ao passado. As minhas saudades são daquilo que não aconteceu, do que não tive na vida com o meu pai.
Muitas vezes sou abalada por essa ausência. Gostaria de ter conversado mais com ele, de conhecer as suas opiniões sobre tanta coisa, sobre tudo o que tem acontecido em Portugal e no mundo. Gostava tanto que ele tivesse assistido ao crescimento dos netos, que beijava e mimava com tanto ardor e carinho.
O tempo em que as nossas vidas se cruzaram foi demasiado
breve.
Ficou muito por viver.
Irremediavelmente, fatalmente o destino cumpriu-se.
Cedo demais.
*
Maria Teresa Sampaio