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quinta-feira, 25 de junho de 2020

UM HOMEM SINGULAR

Na idade em que muitos rapazes andavam no liceu ou gozavam a juventude  ele começou a lutar pela vida. Pedalava muitos quilómetros de bicicleta desde casa, na sua aldeia beirã, para o emprego na cidade. Cedo descobriu a vocação. Veio para Lisboa continuando sempre a trabalhar no mesmo ramo, como alfaiate de senhoras. Em pouco tempo montou o seu próprio negócio na Baixa lisboeta. Não esquecia nunca os pais, que amparava e apoiava devotadamente. Era um bom filho e nunca esqueceu as suas origens.
Apaixonou-se por uma jovem mulher muito bela com quem se casou e ambos tiveram uma menina, filha única.
Em poucos anos alcançou grande sucesso e um lugar cimeiro na alta-costura, na década de 60 e nos primeiros anos da de 70 em Portugal. Era unanimemente considerado um “artista”, porque não só criou como inovou. Pôs tudo quanto era no mínimo que fazia. Esta era uma faceta dominante da sua personalidade e contudo tinha outras que o engrandeciam, como a generosidade e uma apurada sensibilidade. Quem precisasse de ajuda podia contar com ele, desinteressadamente. Era um bom amigo e querido por todos. Conhecia muita gente, falava com todos, sem distinção, do mais humilde ao mais abastado e poderoso, sobre os mais diversos assuntos. Vivia intensamente, sorvia cada momento, saboreando a vida com prazer. Era capaz de súbitas tempestades, que se desvaneciam tão depressa como tinham aparecido, como quando o sol rompe as nuvens e tudo se ilumina. Amava muito a mulher, mas como “bon vivant” era também boémio. Quando vinha tarde para casa, o que acontecia frequentemente, não se esquecia de ir beijar a filha à cama e aconchegar-lhe a roupa.
Tinha um sentido de humor radiante, uma graça genuína e a gargalhada fácil, que todos contagiava. Brincava com as situações, caricaturando-as com uma veia cómica singular. A filha deleitava-se com aqueles folguedos e se a mãe, com severidade, a repreendia por estar a rir à mesa, então é que as gargalhadas estalavam irreprimíveis. 
Parecia que deslizava, uns centímetros acima do solo, dançando com leveza e mestria. A filha, a quem ensinara, cedo, a dançar adorava ver o par que o pai e a mãe formavam no tango. Era um casal elegante, constituído por duas pessoas, muito diferentes mas que se complementavam e, juntos, impunham a moda do seu tempo.
O rapazinho audacioso que se lançara à aventura, de Santar para Viseu e depois para Lisboa tornou-se famoso, mas conservou sempre a facilidade no trato e uma simplicidade cativante.
Quando a filha, muito jovem, ainda na universidade, mas já com dois filhos pequenos, atravessou a pior fase da sua vida, ele telefonava-lhe todas as noites para a apoiar e lhe dizer que a amava, que vivia para ela e para os seus netos.
Naquele sábado de novembro, do agitado ano de 1975 entrou no seu quarto do hospital da CUF, acompanhado da filha, conversou sobre o aniversário dela, que era daí a alguns dias e fumou um cigarro, aparentemente despreocupado, como se não fosse submetido a uma cirurgia no dia seguinte.
Ninguém dissera àquele pai e àquela filha, tão unidos e cúmplices, o que verdadeiramente se passava. Nenhum deles suspeitava que, num ápice, tudo deixaria de ser como tinha sido até então. Nenhum deles estava preparado para o que se iria seguir.
Dilacerado pelas dores, quando veio do bloco operatório, ele agarrava o braço da filha, implorando-lhe a ajuda, que ela, desesperada, não lhe podia dar.
Nesse domingo ele partiu para sempre.

Chamava-se Sérgio Sampaio, tinha 56 anos e era o meu Pai.

Meigo, ternurento, brincalhão, generoso, em todos os que o conheceram deixou memórias fortes de homem bom, sensível, uma pessoa inteira, grande na sua profissão.
Numa carta que me escreveu, e que guardo como uma relíquia, disse: Eu vivo-te, filha. Esta expressão quase poética, quase filosófica definiu, de forma cristalina, o seu amor ilimitado por mim e perdurou no meu coração para sempre.
Como o meu pai, tenho amado e vivido também os meus filhos.
Naquele distante mês de novembro tudo se desmoronou. Aprendi que não vale a pena fazer projetos. Tenho vivido a minha vida o melhor que posso, como ela se vai apresentando em cada dia, em cada momento.
Não sou saudosista nem me prendo ao passado. As minhas saudades são daquilo que não aconteceu, do que não tive na vida com o meu pai.
Muitas vezes sou abalada por essa ausência. Gostaria de ter conversado mais com ele, de conhecer as suas opiniões sobre tanta coisa, sobre tudo o que tem acontecido em Portugal e no mundo.  Gostava tanto que ele tivesse assistido ao crescimento dos netos, que beijava e mimava com tanto ardor e carinho.

O tempo em que as nossas vidas se cruzaram foi demasiado breve.
Ficou muito por viver.
Irremediavelmente, fatalmente o destino cumpriu-se.
Cedo demais.

Sérgio dos Santos Sampaio
[Santar, 13 de julho de 1919 ― Lisboa, 20 de novembro de 1975]

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Maria Teresa Sampaio



sexta-feira, 12 de junho de 2020

As gémeas

Estas duas meninas gémeas teriam feito, ontem, 99 anos e eu queria tê-las homenageado no dia certo, mas só agora consegui digitalizar esta fotografia.
Quem pode adivinhar o que a vida lhe reserva mais tarde? Tantas vezes penso nisso, não com qualquer saudosismo, mas com um sentido quase literário da história de cada SER .
Ambas tiveram percursos diferentes, e marcaram as suas vidas de forma muito distinta. Ambas cresceram, separaram-se, sofreram  - muito - e voltaram a encontrar-se nas suas diferenças. Ambas foram lutadoras incansáveis, nunca se deixando abater pelas circunstâncias e, não obstante, a vida não foi meiga para elas. Penso nisso e emociono-me. Gostava que tivessem sido felizes, ou mais felizes. Sentiam a dor, física ou moral, de cada uma delas, ainda que pudessem encontrar-se em continentes diferentes e nenhuma tivesse contado ainda à outra o que se estava a passar. Eram gémeas idênticas. Fisicamente iguais, mas com feitios diversos, ambas se tornaram muito belas.
Caminharam pela vida fora de cabeça bem erguida.
Uma chamava-se Maria da Guia e a outra Ermelinda. Aos sete anos de idade, quando pousaram para esta fotografia, não sabiam ainda que, anos mais tarde, uma outra criança se tornaria o centro das suas existências: eu. Ambas foram minhas mães, embora só uma, a Maria da Guia, fosse a que me abrigou durante nove meses no seu ventre. A Ermelinda foi ainda a minha madrinha. Ambas me deram muito amor. Diversamente. E eu? Amei-as muito, sim. Tenho uma saudade que chega a doer. Em certos dias, quando determinada hora se aproxima, ainda penso que lhes vou telefonar. Mas não, a realidade impõe-se, fria e determinante.
Quem é quem nesta fotografia, nem eu sei bem.
Com um dia de atraso celebro os aniversários das minhas duas mães. Se fossem vivas haveria de as cobrir de beijos e festas.
Parabéns, mãezinha e madrinha. Até um dia.

Maria da Guia Sampaio – 11 de Junho de 1921- 28 de Outubro de 2014
Ermelinda dos Santos Ferreira – 11 de Junho de 1921 – 1 de abril de 2001.

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Maria Teresa Sampaio


Mãe e madrinha com sete anos de idade