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terça-feira, 18 de outubro de 2016

Nietzsche e Pessoa

Nietzsche e Pessoa – ensaios
Edição Bartholomew Ryan, Marta Faustino, Antonio Cardiello.
Tinta da China, 1.ª edição: fevereiro de 2016.

É uma obra muito importante que, em boa hora, foi editada, reunindo os ensaios de conhecidos e consagrados estudiosos de Pessoa. 

Tal como Richard Zenith escreve, também a mim causam admiração ”as coincidências entre um e outro”. À medida que avançava na leitura da obra de Pessoa, mais ou menos em simultâneo com o estudo de Nietzsche, comecei a aperceber-me de pontos comuns. A confirmação chegou quando o Professor Eduardo Lourenço primeiro escreveu sobre o tema, nos anos oitenta. Na realidade, até mesmo quando o poeta vitupera violentamente o filósofo, não consegue apagar as suas marcas. 

Explicita Antonio Cardiello que, para Nietzsche “O sobre-humano (Übermensch) é discípulo do deus Dionísio, por aceitar a vida em todas as suas manifestações, no prazer de se transformar, encarado como alternância da vida e da morte” e o Professor Eduardo Lourenço, referindo-se ao heterónimo Álvaro de Campos, diz-nos: “Na realidade, o poeta da ‘Ode Triunfal’ e da ‘Ode Marítima’ oscila constantemente entre a visão cruel de Nietzsche e o fraternalismo espiritualizante de Walt Whitman. 

É destacadamente na ‘Ode Triunfal’ que Álvaro de Campos tem em si «A fúria de todas as chamas, a raiva de todos os ventos, /A espuma furiosa de todos os rios, que se precipitam.» Canta o presente, como canta também o passado e o futuro, sem renegar nada do que disse ou fez, aceitando tudo o que foi, tudo o que é e tudo o que será:
«Quanto fui, quanto não fui, tudo isso eu sou.
Quanto quis, quanto não quis, tudo isso me forma.
Quanto amei ou deixei de amar é a mesma saudade em mim»

Trata-se de um rotundo e voluntarioso SIM à vida, uma poderosa afirmação de querer e de libertação. Nietzsche tinha-o dito pela boca de Zaratustra: “Poeta, decifrador de enigmas e redentor do acaso, ensinei-lhes a serem criadores de futuro e a libertar com a sua atividade criadora tudo o que foi. Salvar o passado no homem e transmutar tudo o que foi, até que a vontade declare: «mas eu queria que fosse assim! E é o que quererei de ora em diante!».
Zaratustra ama “aquele que tem a alma transbordante, a ponto de perder a consciência de si mesmo e nele carrega todas as coisas! Assim á a totalidade das coisas que causa a sua perda.” Álvaro de Campos sente tudo de todas as maneiras, [1] excessivamente, como um monte confuso de forças cheias de infinito. Tem em si o caos que Nietzsche considera necessário “para gerar uma estrela dançante”. Anseia ser todos e tudo. Transborda emoções. Pertence a tudo para pertencer mais intensamente a si próprio. Transcende-se para melhor conter em si o universo inteiro: 

«Quanto mais unificadamente diverso, dispersadamente atento,
Estiver, sentir, viver, for,
Mais possuirei a existência total do universo,
Mais completo serei pelo espaço inteiro fora.»

Maria Teresa Sampaio
2016 outubro 18











[1] “Afinal a melhor maneira de viajar é sentir”, in Poesia, Assírio & Alvim, ed. Teresa Rita Lopes.

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