Falar
de uma sensação que se desconhece e conseguir a proeza de fazer o leitor
senti-la, ao ponto de a angústia se tornar insuportavelmente dolorosa, é obra
de uma enorme escritora. Se Herta Müller necessitasse de legitimação para o
Prémio Nobel que recebeu em 2009, este livro cumpre esse objetivo na
totalidade.
“Tudo
o que tenho eu trago comigo” é uma autêntica obra-prima da literatura, ultrapassando todos os cânones
habituais. Primo Levi testemunhou a sua experiência nos campos de concentração
em “Se isto é um homem”, livro que nunca mais se esquece. Outros sobreviventes
escreveram e nós questionámos, arrasados: como foi possível? Aqueles que, como
eu, leram o “Arquipélago de Gulag", por Alexander Soljenítsin, nos anos
70, ficaram completamente desiludidos em relação aos ditames e aos sonhos que
os dirigentes do Partido Comunista nos vendiam desde a clandestinidade até ao
25 de Abril. Muitos esqueceram, bloquearam estas verdades incómodas e ainda
hoje votam no “Partido”, “porque ele é necessário”, ou por outras razões que
não vêm ao caso.
No
posfácio do livro, Herta Müller, cuja mãe esteve cinco anos num campo de
trabalho, conta que o tema era tabu, porque recordava o passado fascista da
Roménia”. Em Janeiro de 1945, em nome de Estaline, todos os alemães residentes
na Roménia, homens e mulheres, entre os 17 e os 45 anos, “foram deportados para
a prestação de trabalho forçado em campos soviéticos”. Em 2001, a escritora começou a
registar as conversas com pessoas outrora deportadas da sua aldeia e, em 2009,
foi editado este romance, que conta a história de um jovem deportado, em
Janeiro de 1945, quando ainda havia guerra. Chamava-se Leopold Auberg, mas nem
sequer o nome importava, porque no campo ficava-se desprovido de tudo.
E
assim começa o romance com as frases do próprio deportado, quase premonitórias:
“Tudo o que eu tenho trago comigo.
Ou:
Tudo o que é meu trago comigo”
Em
breve esse “tudo” se transforma em nada, a não ser quando, raramente, se
consegue poupar, de manhã até à noite, uma pequena côdea de pão duro, que se
guarda na almofada e, muitas vezes é roubada. Não me lembro de sentir um tal
crescendo de angústia a ler um livro, de tal forma que se torna insuportável e
nos rói o peito de dor.
O
próprio protagonista diz “Como é que uma pessoa anda por este mundo, quando
sobre si nada mais sabe dizer, a não ser que tem fome. Quando já não consegue
pensar noutra coisa”.
Pode
parecer impossível, mas Herta Müller consegue transmitir o horror de uma forma
poética, filosófica, sem, contudo, lhe tirar o efeito devastador e dramático,
de pura e real tragédia humana. “Não há palavras adequadas ao sofrimento da
fome” – diz o jovem alemão. E acrescenta: “Ainda hoje preciso de provar à fome
que lhe escapei. Eu como literalmente a própria vida, desde que não tenho de
passar fome”.
Mesmo
cinco anos depois, quando foi libertado, ou até sessenta anos depois, Leo não
consegue saborear a alegria da libertação e do regresso a casa. “Há muito” que
tinha “ensinado a minha saudade de casa a ter os olhos secos. E agora desejo
que a minha saudade também deixe de ter dono”. Mas, a humanidade é frágil e Leo
cede, ao receber uma carta da mãe com a fotografia do seu novo irmão, que logo
apelida de seu substituto. Ajoelha-se “à beira da mesa” deixa cair “as mãos
sobre ela e a cara sobra as mãos” e soluça, porque logo assume que os pais
fizeram um filho porque já não contam com ele.
A
libertação nunca é o que se pensa, não coincide com os sonhos que a imaginação
pintou. Depois de regressar a casa, nunca ninguém lhe perguntou nada. O poder
das palavras mata. Leo ficou preso dentro de si, exilado de si próprio,
irremediavelmente só, com um sentimento de inferioridade, de possessão pelo
outro, irremediável. Tal como afirma, muitas décadas depois de ter vivido
aquela experiência radical de fome, de compulsivo trabalho forçado, de ausência
total de posse e de livre arbítrio, Leo acaba por constatar que tem medo de ser
livre: “Em mim habita o tirano da misericórdia, parente do anjo da fome”.
E,
apesar de tanta miséria física e moral, Leo sabe que “A felicidade é uma coisa
repentina.”
Entrei
no ano de 2016 a
ler este romance tristemente belo, despojado, em que o horror é naturalmente
devorado até ao fim, e nem a redenção chega para substituir a lembrança vívida
da FOME. Como explicar, então, que este é um dos mais belos e poderosos
romances que já li?
Lisboa, janeiro de 2016
Maria
Teresa Sampaio
"Tudo o que eu tenho trago comigo." Herta Müller. D. Quixote, Junho, 2010.
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