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domingo, 16 de agosto de 2020

ESPERANÇA

Quantas chuvas já varreram

as melodias de vento que tu escrevias

nas areias do meu estio

Desde então concebi novas primaveras

todas elas tão enganadoras

como esta vontade de partir

de te abandonar no ermo da memória

Mas só tu resististe à gelada solidão do Inverno

Hoje bates-me sorrateiramente à porta

e eu escondo o passado no ventre da esperança

para te receber.


Maria Teresa Sampaio

Plums Blossom, 1879. Oscar-Claude Monet

quarta-feira, 5 de agosto de 2020

Tristeza

“A mãe está tiste?”

― a mãe soluçava,

mal via a estrada e os carros.

“A mãe está tiste?

A mãe tem dói-dói?”

― a mãe mordia o lenço para

não gritar de desespero.

Naquele momento, 

era apenas uma criança

com olhos esbugalhados de espanto

alma dilacerada

e mãos vazias de estrelas.

 

Maria Teresa Sampaio

Picasso 


quinta-feira, 30 de julho de 2020

Que importa?

 Estamos em março

em agosto ou em dezembro?

Que importa,

se a primavera se demora

na chama do teu olhar

se uma tempestade de ternura

desenha carícias apenas sonhadas

nas tuas mãos ávidas

se o súbito relâmpago de desejo

incendeia com ardor excessivo

a pura intensidade dos teus lábios?

 

Teresa Sampaio

Émile Friant




MEMÓRIA

A música é a tua voz

como o canto do mar

nos seixos da praia.

Ouço a tua memória

e ardo no futuro de te encontrar,


Teresa Sampaio


 


quinta-feira, 25 de junho de 2020

UM HOMEM SINGULAR

Na idade em que muitos rapazes andavam no liceu ou gozavam a juventude  ele começou a lutar pela vida. Pedalava muitos quilómetros de bicicleta desde casa, na sua aldeia beirã, para o emprego na cidade. Cedo descobriu a vocação. Veio para Lisboa continuando sempre a trabalhar no mesmo ramo, como alfaiate de senhoras. Em pouco tempo montou o seu próprio negócio na Baixa lisboeta. Não esquecia nunca os pais, que amparava e apoiava devotadamente. Era um bom filho e nunca esqueceu as suas origens.
Apaixonou-se por uma jovem mulher muito bela com quem se casou e ambos tiveram uma menina, filha única.
Em poucos anos alcançou grande sucesso e um lugar cimeiro na alta-costura, na década de 60 e nos primeiros anos da de 70 em Portugal. Era unanimemente considerado um “artista”, porque não só criou como inovou. Pôs tudo quanto era no mínimo que fazia. Esta era uma faceta dominante da sua personalidade e contudo tinha outras que o engrandeciam, como a generosidade e uma apurada sensibilidade. Quem precisasse de ajuda podia contar com ele, desinteressadamente. Era um bom amigo e querido por todos. Conhecia muita gente, falava com todos, sem distinção, do mais humilde ao mais abastado e poderoso, sobre os mais diversos assuntos. Vivia intensamente, sorvia cada momento, saboreando a vida com prazer. Era capaz de súbitas tempestades, que se desvaneciam tão depressa como tinham aparecido, como quando o sol rompe as nuvens e tudo se ilumina. Amava muito a mulher, mas como “bon vivant” era também boémio. Quando vinha tarde para casa, o que acontecia frequentemente, não se esquecia de ir beijar a filha à cama e aconchegar-lhe a roupa.
Tinha um sentido de humor radiante, uma graça genuína e a gargalhada fácil, que todos contagiava. Brincava com as situações, caricaturando-as com uma veia cómica singular. A filha deleitava-se com aqueles folguedos e se a mãe, com severidade, a repreendia por estar a rir à mesa, então é que as gargalhadas estalavam irreprimíveis. 
Parecia que deslizava, uns centímetros acima do solo, dançando com leveza e mestria. A filha, a quem ensinara, cedo, a dançar adorava ver o par que o pai e a mãe formavam no tango. Era um casal elegante, constituído por duas pessoas, muito diferentes mas que se complementavam e, juntos, impunham a moda do seu tempo.
O rapazinho audacioso que se lançara à aventura, de Santar para Viseu e depois para Lisboa tornou-se famoso, mas conservou sempre a facilidade no trato e uma simplicidade cativante.
Quando a filha, muito jovem, ainda na universidade, mas já com dois filhos pequenos, atravessou a pior fase da sua vida, ele telefonava-lhe todas as noites para a apoiar e lhe dizer que a amava, que vivia para ela e para os seus netos.
Naquele sábado de novembro, do agitado ano de 1975 entrou no seu quarto do hospital da CUF, acompanhado da filha, conversou sobre o aniversário dela, que era daí a alguns dias e fumou um cigarro, aparentemente despreocupado, como se não fosse submetido a uma cirurgia no dia seguinte.
Ninguém dissera àquele pai e àquela filha, tão unidos e cúmplices, o que verdadeiramente se passava. Nenhum deles suspeitava que, num ápice, tudo deixaria de ser como tinha sido até então. Nenhum deles estava preparado para o que se iria seguir.
Dilacerado pelas dores, quando veio do bloco operatório, ele agarrava o braço da filha, implorando-lhe a ajuda, que ela, desesperada, não lhe podia dar.
Nesse domingo ele partiu para sempre.

Chamava-se Sérgio Sampaio, tinha 56 anos e era o meu Pai.

Meigo, ternurento, brincalhão, generoso, em todos os que o conheceram deixou memórias fortes de homem bom, sensível, uma pessoa inteira, grande na sua profissão.
Numa carta que me escreveu, e que guardo como uma relíquia, disse: Eu vivo-te, filha. Esta expressão quase poética, quase filosófica definiu, de forma cristalina, o seu amor ilimitado por mim e perdurou no meu coração para sempre.
Como o meu pai, tenho amado e vivido também os meus filhos.
Naquele distante mês de novembro tudo se desmoronou. Aprendi que não vale a pena fazer projetos. Tenho vivido a minha vida o melhor que posso, como ela se vai apresentando em cada dia, em cada momento.
Não sou saudosista nem me prendo ao passado. As minhas saudades são daquilo que não aconteceu, do que não tive na vida com o meu pai.
Muitas vezes sou abalada por essa ausência. Gostaria de ter conversado mais com ele, de conhecer as suas opiniões sobre tanta coisa, sobre tudo o que tem acontecido em Portugal e no mundo.  Gostava tanto que ele tivesse assistido ao crescimento dos netos, que beijava e mimava com tanto ardor e carinho.

O tempo em que as nossas vidas se cruzaram foi demasiado breve.
Ficou muito por viver.
Irremediavelmente, fatalmente o destino cumpriu-se.
Cedo demais.

Sérgio dos Santos Sampaio
[Santar, 13 de julho de 1919 ― Lisboa, 20 de novembro de 1975]

*

Maria Teresa Sampaio



sexta-feira, 12 de junho de 2020

As gémeas

Estas duas meninas gémeas teriam feito, ontem, 99 anos e eu queria tê-las homenageado no dia certo, mas só agora consegui digitalizar esta fotografia.
Quem pode adivinhar o que a vida lhe reserva mais tarde? Tantas vezes penso nisso, não com qualquer saudosismo, mas com um sentido quase literário da história de cada SER .
Ambas tiveram percursos diferentes, e marcaram as suas vidas de forma muito distinta. Ambas cresceram, separaram-se, sofreram  - muito - e voltaram a encontrar-se nas suas diferenças. Ambas foram lutadoras incansáveis, nunca se deixando abater pelas circunstâncias e, não obstante, a vida não foi meiga para elas. Penso nisso e emociono-me. Gostava que tivessem sido felizes, ou mais felizes. Sentiam a dor, física ou moral, de cada uma delas, ainda que pudessem encontrar-se em continentes diferentes e nenhuma tivesse contado ainda à outra o que se estava a passar. Eram gémeas idênticas. Fisicamente iguais, mas com feitios diversos, ambas se tornaram muito belas.
Caminharam pela vida fora de cabeça bem erguida.
Uma chamava-se Maria da Guia e a outra Ermelinda. Aos sete anos de idade, quando pousaram para esta fotografia, não sabiam ainda que, anos mais tarde, uma outra criança se tornaria o centro das suas existências: eu. Ambas foram minhas mães, embora só uma, a Maria da Guia, fosse a que me abrigou durante nove meses no seu ventre. A Ermelinda foi ainda a minha madrinha. Ambas me deram muito amor. Diversamente. E eu? Amei-as muito, sim. Tenho uma saudade que chega a doer. Em certos dias, quando determinada hora se aproxima, ainda penso que lhes vou telefonar. Mas não, a realidade impõe-se, fria e determinante.
Quem é quem nesta fotografia, nem eu sei bem.
Com um dia de atraso celebro os aniversários das minhas duas mães. Se fossem vivas haveria de as cobrir de beijos e festas.
Parabéns, mãezinha e madrinha. Até um dia.

Maria da Guia Sampaio – 11 de Junho de 1921- 28 de Outubro de 2014
Ermelinda dos Santos Ferreira – 11 de Junho de 1921 – 1 de abril de 2001.

*
Maria Teresa Sampaio


Mãe e madrinha com sete anos de idade

sexta-feira, 24 de abril de 2020

ALGUÉM SE LEMBRA OU SABE COMO ERA PORTUGAL ANTES DO 25 DE ABRIL?


ANTES DO 25 DE ABRIL EM PORTUGAL
Não existia democracia nem Liberdade.
Não havia partidos políticos. Só era autorizada a União Nacional/ Acção Nacional Popular, que representava o partido único do regime ditatorial de Salazar e, depois, Caetano.
Não havia eleições livres.
Não havia Serviço Nacional de Saúde. A saúde estava a cargo das famílias, das instituições privadas ou da previdência.
Não havia salário mínimo nacional.
Não havia direito a férias, subsídio de férias e de Natal previstos na Lei.
A Constituição não garantia os direitos dos cidadãos à educação, à saúde, ao trabalho e à habitação.
Não existia o direito de reunião e de livre associação e as manifestações eram proibidas.
Não havia o direito à greve.
Não se podia sair livremente do país e as mulheres só o podiam fazer com autorização dos maridos, se fossem casadas.
Não havia paz.

HAVIA:
- A guerra colonial em (com os movimentos de libertação das colónias) Angola, Guiné e Moçambique, sendo negado aos seus povos o mais elementar direito à auto-determinação. Durou 13 anos, com um número total de efetivos a rondar os 149 mil homens. Houve cerca de 8.290 mortos, restaram cerca de 30 mil deficientes e, segundo estimativas médicas, existem 140.000 homens afetados com “stress de guerra”. Os rapazes com dezoito anos ou mais, ou que fossem apanhados pela PIDE/DGS nas malhas da contestação ao regime, tinham como castigo, a prisão, a guerra e/ou o Batalhão Disciplinar de Penamacor.
- Censura prévia à Imprensa, ao Cinema, ao Teatro, às Artes Plásticas, à Música e à Literatura. Por exemplo, não se podia dizer guerra colonial, mas sim guerra ultramarina… O melhor era nem falar.  A correspondência era violada e os telefones colocados sob escuta.
- Polícia política para defender o regime totalitário de quem tivesse a ousadia de ter ideias opostas ou apenas diferentes. Era a PIDE (Polícia Internacional de Defesa do Estado), que depois se passou a chamar DGS (Direção Geral de Segurança). Tinha agentes infiltrados por todo o lado, até nos cafés e nos cantos das ruas. Ninguém podia falar à vontade, nem contar uma simples anedota sobre o regime, sem saber se na mesa do lado estaria um PIDE, que faria a denúncia. Apareciam em casa dos cidadãos, considerados subversivos, pela calada da noite ou de madrugada para os prenderem, sem julgamento ou controlo judicial.  ― - Ao  abrigo das famigeradas “medidas de segurança”, podiam manter os presos políticos na prisão quase que indefinidamente, por períodos de 6 meses a 3 anos, prorrogáveis por 3 períodos sucessivos de 3 anos, mesmo nos casos dos que tivessem sido absolvidos. Era a impunidade total.
- Presos políticos, tortura e morte nas prisões: Fortaleza de S. João Baptista, nos Açores, a cadeia do Aljube em Lisboa, o Forte de Caxias, o Forte de Peniche, as cadeias da Rua do Heroísmo, junto à sede da PIDE no Porto - para além da sede da PIDE da Rua António Maria Cardoso, em Lisboa, onde a maioria dos presos eram submetidos a dias seguidos de interrogatórios e tortura e onde alguns foram mesmo torturados até à morte. Mas a mais violenta das prisões era o Campo de Concentração do Tarrafal ou Campo da Morte Lenta - como ficou conhecido pelos presos - em Cabo Verde. Os funcionários do Partido Comunista, então na clandestinidade e, mais tarde, os membros da Acção Revolucionária Armada (ARA), Liga de Unidade e Acção Revolucionária (LUAR) e das Brigadas Revolucionárias (BR) eram especial e violentamente torturados.
Agressões às presas e aos presos a soco e pontapé, espancamentos, torturas de estátua e de privação do sono até limites impensáveis e isolamento contínuo (Álvaro Cunhal esteve em completo isolamento durante mais de oito anos).

Particularmente em relação às mulheres:

Havia uma subalternização flagrante, terrivelmente injusta e machista das mulheres, vistas em tudo como cidadãs de segunda. Era-lhes vedado o acesso a várias carreiras, como a diplomática, a magistratura judicial, a militar e a polícial. As enfermeiras e hospedeiras de bordo tinham o direito ao matrimónio limitado. Apenas 19% trabalhavam fora de casa e ganhavam cerca de 40% menos do que os homens. Eram impedidas de exercer atividades lucrativas sem autorização do marido. Só tinham direito a votar as que tivessem curso médio ou superior, ou fossem chefes de família (o que podia acontecer por viuvez) e desde que demonstrassem “idoneidade moral”. A mulher, face ao Código Civil, podia ser repudiada pelo marido no caso de não ser virgem na altura do casamento. O marido tinha o direito de abrir a correspondência da mulher, podendo também, de acordo com o Código Penal, matar a mulher em flagrante adultério (e a filha em flagrante corrupção), sofrendo apenas um desterro de seis meses. A mulher não tinha o direito de tomar contraceptivos contra a vontade do marido, uma vez que ele podia invocar esse facto para fundamentar o pedido de divórcio ou separação judicial. O aborto era punido em qualquer circunstância, com pena de prisão de 2 a 8 anos. Não existia pensão mínima no Regime Geral e a pensão média, o abono de família e de aleitação atingiam valores irrisórios.

Era assim Portugal, antes do 25 de Abril.


24 de abril de 1974
(mts)
Campo de Concentração do Tarrafal 

 Latrinas da prisão do Tarrafal.

 Prisão de Peniche
Prisão do Aljube, Lisboa.
 Prisão de Caxias

 Censura de uma notícia sobre o General Humberto Delgado
 Carimbo da Censura  


A despedida aos soldados que partiam para a guerra colonial


Cartoons de Joãpo Abel Manta





Fontes:
Irene Pimentel, ‘A polícia política e a tortura em Portugal, entre 1933 e 1974’, http://irenepimentel.blogspot.pt/2015/02
Centro de Documentação 25 de Abril © 2012 da Universidade de Coimbra
Suporte: ucd25a@ci.uc.pt
O Militante, 25 de abril, edição n.º 329 - Mar/Abr. 2014
Diário de Notícias, ‘A grande revolução esquecida do 25 de Abril’, Fernanda Câncio, 25 de Abril de 1975.