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domingo, 20 de setembro de 2015

Aniversário de Ricardo Reis

O DIA DE HOJE É INTEIRAMENTE DEDICADO A RICARDO REIS, PORQUE O SEU ANIVERSÁRIO, SEGUNDO FERNANDO PESSOA, QUE LHE TRAÇOU A “VIDA” E A “OBRA”, OCORREU EM 19 DE SETEMBRO DE 1988, UM ANO ANTES DO NASCIMENTO DO SEU CRIADOR..

Na sua Carta a Adolfo Casais Monteiro - 13 Jan. 1935, Pessoa, ao explicar a origem do “heteronimismo”, diz que “aí por 1912, salvo erro (que nunca pode ser grande), veio-me à ideia escrever uns poemas de índole pagã.” […] “Esbocei umas coisas em verso irregular (não no estilo Álvaro de Campos, mas num estilo de meia regularidade), e abandonei o caso. Esboçara-se-me, contudo, numa penumbra mal urdida, um vago retrato da pessoa que estava a fazer aquilo. (Tinha nascido, sem que eu soubesse, o Ricardo Reis)”[…]
“Num dia em que finalmente desistira — foi em 8 de Março de 1914 — acerquei-me de uma cómoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim.” 
“Aparecido Alberto Caeiro, tratei logo de lhe descobrir — instintiva e subconscientemente — uns discípulos. Arranquei do seu falso paganismo o Ricardo Reis latente, descobri-lhe o nome, e ajustei-o a si mesmo, porque nessa altura já o via. “[…]
“Eu vejo diante de mim, no espaço incolor mas real do sonho, as caras, os gestos de Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos. Construi-lhes as idades e as vidas. Ricardo Reis nasceu em 1887 (não me lembro do dia e mês, mas tenho-os algures), no Porto, é médico e está presentemente no Brasil.” […]

“Caeiro era de estatura média, e, embora realmente frágil (morreu tuberculoso), não parecia tão frágil como era. Ricardo Reis é um pouco, mas muito pouco, mais baixo, mais forte, mas seco. “[…]
“Ricardo Reis, educado num colégio de jesuítas, é, como disse, médico; vive no Brasil desde 1919, pois se expatriou espontaneamente por ser monárquico. É um latinista por educação alheia, e um semi-helenista por educação própria.”[…]
“Como escrevo em nome desses três?... Caeiro por pura e inesperada inspiração, sem saber ou sequer calcular que iria escrever. Ricardo Reis, depois de uma deliberação abstracta, que subitamente se concretiza numa ode.” […]
“O difícil para mim é escrever a prosa de Reis — ainda inédita”[…]


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Fernando Pessoa


Da “ Carta a Adolfo Casais Monteiro - 13 Jan. 1935”. 


In Cartas. Fernando Pessoa. (Richard Zenith, ed.) Lisboa, . Lisboa: Assírio & Alvim, 2001
Imagem: Carta Astral de Ricardo Reis traçada pelo seu criador, Fernando Pessoa.

                    Imagem: Carta astrológica de Ricardo Reis traçada pelo seu criador, Fernando Pessoa.


ASPECTOS

«Prefácio geral».
1. Alberto Caeiro (1889-1915) — «O Guardador de Rebanhos» e outros poemas e fragmentos.
2. Ricardo Reis: «Odes».
3. António Mora: «Alberto Caeiro e a renovação do paganismo».
4. Álvaro de Campos: «Arco de Triunfo», Poemas.
5. Vicente Guedes: «Livro do Desassossego».

A atitude que deveis tomar para com estes livros publicados é a de quem não tivesse dado esta explicação, e os houvesse lido, tendo-os comprado, um a um, de cima das mesas de uma livraria. Outra não deve ser a condição mental de quem lê. Quando ledes Hamlet, não começais por estabelecer bem no vosso espírito que aquele enredo nunca foi real. Envenenaríeis com isso o vosso próprio prazer, que nessa leitura buscais. Quem lê deixa de viver. Fazei agora por que o façais. Deixai de viver, e lede. O que é a vida?
Mas aqui, mais intensamente que no caso da obra dramática de um poeta, tendes que contar com o relevo real do autor suposto. Não vos assiste o direito de acreditar na minha explicação. Deveis supor, logo ela lida, que menti; que ides ler obras de diversos poetas, ou de escritores diversos, e que através delas podeis colher emoções ou ensinamentos deles, em que eu, salvo como publicador, não estou nem colaboro. Quem vos diz que esta atitude não seja, no fim, a mais justamente conforme com a ignorada realidade das coisas?
Na minha obra pessoal coisas haverá que mostrem semelhança com o que há nestas obras. Não vos admireis. São legítimas influências literárias — ou minhas neles, ou deles em mim. Não há semelhança ou coexistência de personalidades.
Cada personalidade dessas — reparai — é perfeitamente una consigo própria"[...]

Finjo? Não finjo. Se quisesse fingir, para que escreveria isto? Estas coisas passaram-se, garanto; onde se passaram não sei, mas foi tanto quanto neste mundo qualquer coisa se passa, em casas reais, cujas janelas abrem sobre paisagens realmente visíveis. Nunca lá estive — mas acaso sou eu quem escreve?
Na vossa vida prática, cheia de coisas impossíveis, e que nunca podiam ter acontecido, na vossa vida de sentimento, doméstica ou própria, cheia de coisas de emoção que nunca se sentiram neste mundo, há acaso realidades tão presentes como estas, que talvez julgais indefinitivas? Ah, as sombras sois vós e as vossas sensações. A realidade, sendo verdadeira, é assim como me a escreveram estes, e como estes, que escreveram, foram.
Não me digais que sou médium de espíritos estranhos à terra. Com a terra me quero, e com o seu âmbito azul. O horizonte inclui quanto eu incluo; o resto são os maus sonhos que cada um tem a sós consigo.

Isto indica bem que a ordem da publicação deve ser a seguinte: (1) Caeiro, completo; (2) Ricardo Reis, vários livros das Odes, (3) Notas para a Recordação (pois nelas se não fala do próprio Campos), (4) um livro de Álvaro de Campos, (5) a discussão em família.
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s.d.
Fernando Pessoa

In Fernando Pessoa et le Drame Symboliste: Héritage et création. Maria Teresa Rita Lopes. Paris: F. C. Gulbenkian, 1977. - 501.

       
Imagem: Assinatura que Fernando Pessoa traçou para a atribuir a Ricardo Reis


[CONTROVÉRSIA ENTRE ÁLVARO DE CAMPOS E RICARDO REIS]

[Cito apenas a parte de Ricardo Reis, porque é dele que hoje se trata]

"Ricardo Reis:
Diz Campos que a poesia é uma prosa em que o ritmo é artificial. Considera a poesia como uma prosa que envolve música, donde o artifício. Eu, porém, antes diria que a poesia é uma música que se faz com ideias, e por isso com palavras. Considerai que será o fazerdes música com ideias, em vez de com emoções.
Com emoções fareis só música. Com emoções que caminham para as ideias, que se agregam ideias para se definir, fareis o canto. Com ideias só, contendo tão somente [?] o que de emoção há necessariamente em todas as ideias, fareis poesia. E assim o canto é a forma primitiva da poesia, porque é o caminho para ela [var.: não é a primeira forma da poesia, senão o caminho para ela].
Quanto mais fria a poesia, mais verdadeira. A emoção não deve entrar na poesia senão como elemento dispositivo do ritmo, que é a sobrevivência longínqua da música no verso. E esse ritmo, quando é perfeito, deve antes surgir da ideia que da palavra. Uma ideia perfeitamente concebida é rítmica em si mesma; as palavras em que perfeitamente se diga não têm poder para a apoucar. Podem ser duras e frias: não pesa — são as únicas e por isso as melhores. E, sendo as melhores, são as mais belas.
De nada serve o simples ritmo das palavras se não contém ideias. Não há nomes belos, senão pela evocação que os torna nomes. Embalar-se alguém com os nomes próprios de Milton é justo se se conhece o que exprimem, absurdo se se ignora, não havendo mais que um sono do entendimento, de que as palavras são o torpor."

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9-4-1930
Fernando Pessoa

In Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1996.



«NOTAS PARA A RECORDAÇÃO DO MEU MESTRE CAEIRO»

(1930 - 1932) [Fragmento]

[...] O meu mestre Caeiro não era um pagão: era o paganismo. O Ricardo Reis é um pagão, o António Mora é um pagão, eu sou um pagão; o próprio Fernando Pessoa seria um pagão, se não fosse um novelo embrulhado para o lado de dentro. Mas o Ricardo Reis é um pagão por carácter, o António Mora é um pagão por inteligência, eu sou um pagão por revolta, isto é, por temperamento.[...]
*
"Há frases repentinas, profundas porque vêm do profundo, que definem um homem, ou, antes, com que um homem se define, sem definição. Não me esquece aquela em que Ricardo Reis uma vez se me definiu. Falava-se de mentir, e ele disse: «Abomino a mentira, porque é uma inexactidão». Todo o Ricardo Reis — passado, presente e futuro — está nisto."

[...]" As ideias organicamente ocultas na expressão poética do meu mestre Caeiro tentaram definir-se, com maior ou menor felicidade lógica, em certas teorias do Ricardo Reis, em certas teorias minhas, e no sistema filosófico - esse perfeitamente definido - do António Mora."
*
[... ]"Propriamente falando, Reis, Mora e eu somos três interpretações orgânicas de Caeiro. Reis e eu, que somos fundamentalmente embora diversamente poetas, interpretamos ainda com sujidades do sentimento"

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Álvaro de Campos

In: Obra Essencial de Fernando Pessoa. Prosa Publicada em Vida. Edição Richard Zenith, Assírio & Alvim, Abril 2007



«NOTAS PARA A RECORDAÇÃO DO MEU MESTRE CAEIRO»
(1930 - 1932) [Fragmento. Continuação do anterior]


[...] " Propriamente falando, Reis, Mora e eu somos três interpretações orgânicas de Caeiro. Reis e eu, que somos fundamentalmente embora diversamente poetas, interpretamos ainda com sujidades do sentimento. Mora, puramente intelectual, interpreta com a razão; se tem sentimento, ou temperamento, anda disfarçado.
O conceito da vida, formado por Ricardo Reis, vê-se muito claramente nas suas odes, pois, quaisquer que sejam os seus defeitos, o Reis é sempre claro. Esse conceito da vida é absolutamente nenhum, ao contrário do de Caeiro, que também é nenhum, mas às avessas. Para Ricardo Reis, nada se pode saber do universo, excepto que nos foi dado como real um universo material. Sem necessariamente aceitarmos como real esse universo, temos que o aceitar como tal, pois não nos foi dado outro. Temos que viver nesse universo, sem metafísica, sem moral, sem sociologia nem política. Conformemo-nos com esse universo externo, o único que temos, assim como nos conformaríamos com o poder absoluto de um rei, sem discutir se é bom ou mau, mas simplesmente porque é o que é. Reduzamos a nossa acção ao mínimo, fechando-nos quanto possível nos instintos que nos foram dados, e usando-os de modo a produzir o menos desconforto para nós e para os outros, pois tem igual direito a não ter desconforto. Moral negativa, mas clara. Comamos, bebamos e amemos (sem nos prender sentimentalmente à comida, à bebida e ao amor, pois isso traria mais tarde elementos de desconforto); a vida é um dia, e a noite é certa; não façamos a ninguém nem bem nem mal, pois não sabemos o que é bem ou mal, e nem sequer sabemos se fazemos um quando supomos fazer o outro, a verdade, se existe, é com os Deuses, ou seja com as forças que formaram ou criaram, ou governam, o mundo - forças que, como na sua acção violam todas as nossas ideias do que é moral e todas as nossas ideias do que é imoral, estão patentemente além ou fora de qualquer conceito do bem ou do mal, nada havendo a esperar delas para nosso bem ou até para mal nosso. Nem crença na verdade, nem crença na mentira; nem optimismo nem pessimismo. Nada: a paisagem, um copo de vinho, um pouco de amor sem amor, e a vaga tristeza de nada compreender e de ter que perder o pouco que nos é dado. Tal é a filosofia de Ricardo Reis. É a de Caeiro endurecida, falsificada pela estilização. Mas é absolutamente a de Caeiro, de outro modo: o aspecto côncavo daquele mesmo arco de que a de Caeiro é o aspecto convexo, o fechar-se sobre si mesmo daquilo que em Caeiro está virado para o Infinito - sim, para o mesmo infinito que nega.
É isto - este conceito tão fundamente negativo das coisas - que dá à poesia de Ricardo Reis aquela dureza, aquela frieza, que ninguém negará que tem, por mais que a admire; e quem a admira - pouca gente - é por essa mesma frieza, aliás, que a admira. Nisto, de resto, Caeiro e Reis são iguais, com a diferença que Caeiro tem frieza sem dureza; que Caeiro, que é a infância filosófica da atitude de Reis, tem a frieza de uma estátua ou de um píncaro nevado, e Reis tem a frieza de um belo túmulo ou de um maravilhoso rochedo sem sol nem onde haver musgos. E é por isto que, sendo a poesia de Reis rigorosamente clássica na forma, é totalmente destituída de vibração - mais ainda que a de Horácio, apesar do maior conteúdo emotivo e intelectual. A tal ponto é intelectual, e portanto fria, a poesia de Reis, que quem não compreender um poema dele (o que facilmente sucede, dada a excessiva compressão) não lhe apreende o ritmo." [...]

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Álvaro de Campos
In: Obra Essencial de Fernando Pessoa. Prosa Publicada em Vida. Edição Richard Zenith, Assírio & Alvim, Abril 2007


             
                                                  Imagem: Ricardo Reis por Sara Pereira

«NOTAS PARA A RECORDAÇÃO DO MEU MESTRE CAEIRO»
(1930 - 1932) [Fragmento. Conclusão do anterior]


"O Reis é um intelectual, com o mínimo de sensibilidade de que um intelectual precisa para que a sua inteligência não seja simplesmente matemática, com o mínimo do que ente humano precisa para se poder verificar pelo termómetro que não está morto."[...]
"Reis deriva a sua alma daquele outro verso, que Caeiro se esqueceu de escrever, «as minhas sensações são todas pensamentos».[...]
" O Ricardo Reis era um pagão latente, desentendido da vida moderna e desentendido daquela vida antiga, onde deveria ter nascido - desentendido da vida moderna porque a sua inteligência era de tipo e qualidade diferente; desentendido da vida antiga porque a não podia sentir, pois se não sente o que não está aqui."[...]
". Antes de conhecer Caeiro, Ricardo Reis não escrevera um único verso, e quando conheceu Caeiro tinha já vinte e cinco anos. Desde que conheceu Caeiro, e lhe ouviu o Guardador de Rebanhos, Ricardo Reis começou a saber que era organicamente poeta. Dizem alguns fisiologistas que é possível a mudança de sexo. Não sei se é verdade, porque não sei se alguma coisa é «verdade». Mas o certo é que Ricardo Reis deixou de ser mulher para ser homem, ou deixou de ser homem para ser mulher - como se preferir - quando teve esse contacto com Caeiro. "
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Álvaro de Campos

In: Obra Essencial de Fernando Pessoa. Prosa Publicada em Vida. Edição Richard Zenith, Assírio & Alvim, Abril 2007


[NÃO SEM LEI MAS SEGUNDO IGNOTA LEI]

Não sem lei, mas segundo ignota leu 
Entre os homens o fado distribui 
O bem e o mal estar
Fortuna e glória, danos e perigos.

Bem ou mal, não terás o que mereces. 
Querem os deuses a isto obrigar-te [?]. 
Nem castigo ou prémio 
Speres, desprezes, temas ou precises.

Porque até aos deuses toda a acção é clara 
E é boa ou má, digna de homem ou deus,
Porque o fado não tem 
Leis nossas com que reja a sua lei.

Quem é rei hoje, amanhã scravo cruza 
Com o scravo de hoje que amanhã é rei. 
Sem razão um caiu, 
Sem causa nele o outro ascenderá.

Não em nós, mas dos deuses no capricho 
E nas sombras pra além do seu domínio 
Está o que somos, e temos, 
A vida e a morte do que somos nós.

Se te apraz mereceres, que te apraza 
Por mereceres, não porque te o Fado 
Dê o prémio ou a paga 
De com constância haveres merecido.

Dúbia é a vida, inconstante o que a governa. 
O que esperamos nem sempre acontece 
Nem nos falece sempre, 
Nem há com que a alma uma ou outra coisa spere.

Torna teu coração digno dos deuses 
E deixa a vida incerta ser quem seja. 
O que te acontecer 
Aceita. Os deuses nunca se revoltam.

Nas mãos inevitáveis do destino 
A roda rápida soterra hoje 
Quem ontem viu o céu 
Do transitório alto do seu giro.

[?] - palavra de leitura duvidosa

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17 - 11 - 1918
Ricardo Reis

In Poesia , Assírio & Alvim, ed. Manuela Parreira da Silva, 2000

                                                 Imagem: O Círculo Mágico da Vida

[PARA SER GRANDE SÊ INTEIRO]

Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui. 
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és 
No mínimo que fazes. 
Assim em cada lago a Lua toda 
Brilha, porque alta vive.


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14 - 2 - 1933
Ricardo Reis

In Poesia , Assírio & Alvim, ed. Manuela Parreira da Silva, 2000

                                                               Imagem:Google


19 de setembro de 2015
mts

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