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domingo, 3 de novembro de 2013

Mia Couto de parabéns.

Mia Couto já merecia toda a nossa admiração e respeito. Agora, muito mais. Recebeu o Prémio Camões 2013, o mais importante prémio literário da língua portuguesa, tendo sido escolhido unanimemente pelo júri, composto por seis críticos e,  na 6.ª feira, 1 de Novembro, o prémio internacional de literatura Neustadt, atribuído de dois em dois anos pela Universidade de Oklahoma, e conhecido como o Nobel americano. Trata-se de um prémio que já contemplou, antes, escritores como Gabriel García Márquez, Elizabeth Bishop e João Cabral de Melo Neto.
Mia Couto,  pseudónimo de António Emílio Leite Couto, de 58 anos, já tinha, antes, recebido o Prémio  da União Latina de Literaturas Românicas e o Prémio Nacional de Ficção da Associação dos Escritores Moçambicanos em 1995. O seu romance “Terra Sonâmbula” foi considerado um dos doze melhores livros africanos do século XX. 
O escritor é biólogo e dirige uma empresa de estudos de impacto ambiental em Moçambique.

Quero, em sua homenagem, publicar aqui, um excerto de um livro de Mia Couto, mas, a dificuldade é maior que a empresa. Tudo o que ele escreve é um deslumbramento de existir, um amor à terra, uma pura e feliz reinvenção da língua portuguesa. A felicidade, a alegria pura que. por vezes, transparecem dos seus livros, é o mesmo que eu sinto agora. Por ele. 


MIA COUTO. CADA HOMEM É UMA RAÇA.

"Naquela noite, as horas me percorriam, insones ponteiros. Eu queria só me esquecer-me. Assim deitado, não sofria outra carência que não fosse, talvez, a morte. (…)
Nesse enquanto, ela entrou. Era uma mulher de olhos lisos que humedeciam o quarto. Vagueou por alio, parecia não acreditar na sua própria presença. Seus dedos passeavam pelos móveis, em distraído afecto. Quem sabe ela sonambulasse, aquela realidade lhe fosse muito fictícia)? Eu queria avisar-lhe que estava enganada que aquele não era seu competente endereço. Mas o silêncio me alertou que ali estava a decorrer um destino, o cruzar das fatais providências. Então, ela se sentou na minha cama, ajeitou seu delicado lugar. Sem me olhar, começou de chorar.
Nem me guiei: já as minhas carícias se desenrolavam em seu colo. Ela se deitou, imitando a terra em estado de gestação. Seu corpo se me entreabria. Mais fôssemos, no seguinte, e chegaríamos a vias do facto. Mas, nos avanços, me tremurei. Vozes ocultas me seguravam: não, eu não podia ceder.
Mas a estranha me atentava, descendo do seu decote. Seu peito me espreitava, subornando meus intentos. As lendas antigas me avisavam: virá uma que acenderá a lua. Se resistires, merecerás o nome da gente guerreira, o povo de quem descendes. Nem eu bem decifrava a lendável mensagem. Certo era que ali, naquele quarto, se executava a prova de mim, o quanto me valiam meus mandos” (…)

Mia Couto, Mulher de Mim, in Cada Homem é uma Raça, Caminho.1990




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