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quarta-feira, 2 de julho de 2014

Sophia no Panteão. Finalmente.

Por tudo quanto disseste, sentiste, amaste e escreveste, na luz deste país meridional, nos anos acorrentados, em que ousaste manifestar o teu desdém e a tua revolta; pelo 25 de Abril de 1974, que tu cantaste, como ninguém mais o fez, em cinco versos apenas, com uma simplicidade única, que tem a marca do teu génio; pela tua vida íntegra, corajosa e apaixonada, SOPHIA, há muito que merecias a homenagem, que só dez anos depois  te prestaram..
Esta foi, de outra forma, "a madrugada que eu esperava" e tu, Poeta  maior de todos os nossos tempos, passados e atuais, tu és "Puro espírito do êxtase e do vento", que, "Na clara paisagem essencial e pobre", viveste sempre "segundo a lei da liberdade, /Segundo a lei da exacta  eternidade." (In No Tempo Dividido)

Por todos nós tu pranteaste como ninguém os dias da mais violenta insídia:

PRANTO PELO DIA DE HOJE

Nunca choraremos bastante quando vemos
O gesto criador ser impedido
Nunca choraremos bastante quando vemos
Que quem ousa lutar é destruído
Por troças por insídias por venenos
E por outras maneiras que sabemos
Tão sábias tão subtis e tão peritas
Que nem podem sequer ser bem descritas

                                                                                    In Livro VI - III - As Grades

ESTA GENTE

Esta gente cujo rosto
Às vezes luminoso
E outras vezes tosco
Ora me lembra escravos
Ora me lembra reis
Faz renascer meu gosto
De luta e de combate
Contra o abutre e a cobra
O porco e o milhafre
Pois a gente que tem
O rosto desenhado
Por paciência e fome
É a gente em quem
Um país ocupado
Escreve o seu nome
E em frente desta gente
Ignorada e pisada
Como a pedra do chão
E mais do que a pedra
Humilhada e calcada
Meus canto se renova
E recomeço a busca
Dum país liberto
Duma vida limpa
E dum tempo justo.

In Geografia




25 DE ABRIL
Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo
 

In O Nome das Coisas


Dois dias apenas, depois do 25 de Abril, tu escreveste, com a voz de um povo:


REVOLUÇÃO
Como casa limpa
Como chão varrido
Como porta aberta
Como puro início
Como tempo novo
Sem mancha nem vício
Como a voz do mar
Interior de um povo
Como a voz do mar
Interior de um povo
Como página em branco
Onde o poema emerge
Como arquitectura
Do homem que ergue
Sua habitação.

27 - 4 - 1974

In O Nome das Coisas


Tu disseste aquilo que muitos gostariam de ter sabido dizer e não souberam:

Eu nunca pedi nada porque era 
Completa a minha esperança.*


Só tu soletraste o amor de forma tão pura e cristalina:


PRECE

Que nenhuma estrela queime o teu perfil 
Que nenhum deus se lembre do teu nome 
Que nem o vento passe onde tu passas. 

Para ti eu criarei um dia puro 
Livre como o vento e repetido 
Como o florir das ondas ordenadas. 

In No Tempo Dividido


A PAIXÃO NUA


A paixão nua e cega dos estios 
Atravessou a minha vida como rios 


In O Nome das Coisas


EU BUSCO O RASTRO DE ALGUÉM

Eu busco o rastro de alguém
Que o mar reflecte e contém.

Calma que eterniza as suas horas,
Ou tumulto que vibra
Nas marés desesperadas e sonoras.

Eu busco o rastro de alguém
Que ao meu encontro vem
No sonho de cada linha.
Alguém
Que no silêncio dos pinhais caminha,
Rio correndo, chama
Em tudo acesa.
Alguém que me devasta e inflama
Me destrói e me inunda de certeza.

Alguém que me devora,
Ou infinitamente longe me implora
Que venha.
Alguém que se desenha
No perfil dos montes
E sobe do fundo da terra com as fontes.

In Poesia I



Tu cantaste um tempo, que, infelizmente, hoje se repete:


ESTE É O TEMPO

Este é o tempo
Da selva mais obscura

Até o ar azul se tornou grades
E a luz do sol se tornou impura

Esta é a noite
Densa de chacais
Pesada de amargura

Este é o tempo em que os homens renunciam

In Mar Novo



Tu moras no centro da nossa singularidade e formulas, como mais ninguém, a nossa ânsia do divino:


COMO O RUMOR

Como o rumor do mar dentro de um búzio
O divino sussurra no universoAlgo emerge: primordial projecto

In O Nome das Coisas




AS IMAGENS TRANSBORDAM
As imagens transbordam fugitivas
E estamos nus em frente às coisas vivas.Que presença jamais pode cumprirO impulso que há em nós, interminável,De tudo ser e em cada flor florir?

In Dia do Mar


E tudo se conjuga para que, tal como disseste:


UM DIA

Um dia, mortos, gastos, voltaremos
A viver livres como os animais
E mesmo tão cansados floriremos
Irmãos vivos do mar e dos pinhais.

O vento levará os mil cansaços
Dos gestos agitados irreais
E há-de voltar aos nossos membros lassos
A leve rapidez dos animais.

Só então poderemos caminhar
Através do mistério que se embala
No verde dos pinhais na voz do mar
E em nós germinará a sua fala.


In Dia do Mar

Quando escreveste este poema, Sophia, tu não sabias que, tantos anos depois, ainda hoje, a Pátria tem o sabor amargo do exílio:


PÁTRIA

Por um país de pedra e vento duro 
Por um país de luz perfeita e clara 
Pelo negro da terra e pelo branco do muro 

Pelos rostos de silêncio e de paciência 
Que a miséria longamente desenhou 
Rente aos ossos com toda a exactidão 
Dum longo relatório irrecusável 

E pelos rostos iguais ao sol e ao vento 

E pela limpidez das tão amadas 
Palavras sempre ditas com paixão 
Pela cor e pelo peso das palavras 
Pelo concreto silêncio limpo das palavras 
Donde se erguem as coisas nomeadas 
Pela nudez das palavras deslumbradas 

- Pedra  rio  vento  casa 
Pranto  dia  canto  alento 
Espaço  raiz  e água 
O minha pátria e meu centro 

Me dói a lua me soluça o mar 
E o exílio se inscreve em pleno tempo 

In Livro VI - III - As Grades


Afinal, Sophia, no mais fundo de nós, desejamos:


A PAZ SEM VENCEDOR NEM VENCIDOS

Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos
A paz sem vencedor e sem vencidos
Que o tempo que nos deste seja um novo
Recomeço de esperança e de justiça.
Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos

A paz sem vencedor e sem vencidos
Erguei o nosso ser à transparência
Para podermos ler melhor a vida
Para entendermos vosso mandamento
Para que venha a nós o vosso reino
Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos

A paz sem vencedor e sem vencidos
Fazei Senhor que a paz seja de todos
Dai-nos a paz que nasce da verdade
Dai-nos a paz que nasce da justiça
Dai-nos a paz chamada liberdade
Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos

A paz sem vencedor e sem vencidos

In Dual


Passou uma década, desde que nos deixaste, Sophia, e, contudo, prosseguimos a incansável busca de um "país liberto / Duma vida limpa / E dum tempo justo."


ESTA GENTE

Esta gente cujo rosto
Às vezes luminoso
E outras vezes tosco
Ora me lembra escravos
Ora me lembra reis
Faz renascer meu gosto
De luta e de combate
Contra o abutre e a cobra
O porco e o milhafre
Pois a gente que tem
O rosto desenhado
Por paciência e fome
É a gente em quem
Um país ocupado
Escreve o seu nome
E em frente desta gente
Ignorada e pisada
Como a pedra do chão
E mais do que a pedra
Humilhada e calcada
Meus canto se renova
E recomeço a busca
Dum país liberto
Duma vida limpa
E dum tempo justo.

In Geografia


mts







1 comentário:

catarina disse...

Tão só a melhor poeta portuguesa de sempre. Nunca me canso de a ler e reler e a descoberta é constante.Ando sempre com ela em pensamento e é dela o meu lema preferido: «de tudo quanto vejo me acrescento».