Não
cometo nenhum exagero se disser que este é um dos mais belos romances da
literatura universal. Encoberto durante muitos anos pela “Cortina de Ferro”, proibido
no seu país, a Hungria, só chegaria às mãos dos leitores em todo o mundo,
depois da queda do Muro de Berlim. Mas a vida, por vezes, tem momentos
sombrios, e o autor deste extraordinário romance sobre a amizade não chegou a
presenciar aqueles tempos libertadores. Suicidou-se poucos meses antes, na Califórnia
(Estados Unidos) para onde tinha emigrado.
Escrever
sobre esta obra é para mim uma necessidade, mas também uma espécie de tormento,
porque sei que não conseguirei fazer-lhe justiça. O patamar em que o autor se
encontra é infinitamente superior, para já, do ponto de vista literário, e,
depois, em sabedoria, capacidade de penetração psicológica na mente própria e
do outro e experiência de vida. Com tantos limites, como me atrevo? É um dever
de leitora atenta? Talvez. Quando terminei a sua leitura, interrompida
múltiplas vezes para meditar sobre as interpelações que Sándor Márai nos faz,
fiquei cativa de um fascínio que me cativou e me fez voltar a ele. Li, logo de seguida,
outro livro e, dois dias depois, aí estava eu de novo, completamente
enfeitiçada por aquele general, que comanda as outras personagens e a nós
também. Não, certamente, pelas armas, mas pela magistral lição de vida que dá,
pela extrema sensibilidade e inteligência. E ainda pela dialética que imprime
no diálogo – ou será monólogo? – com o seu melhor amigo, para apurar a verdade.
Henrik
e Konrád são dois amigos, quase como irmãos, embora muito diferentes, que vão
juntos para o colégio militar e vivem uma amizade, tendo como pano de fundo a
desagregação do império Austro-Húngaro, a I Guerra Mundial e o início da segunda.
Logo nas primeiras páginas, o autor alerta-nos para a delicadeza dessa relação,
muito embora diga: “Os dois rapazes sentiam que viviam numa condição
maravilhosa, sem nome, num certo estado de graça”. Viveram juntos, no colégio,
nas férias, no Natal, uma parte importante das suas vidas. Foram vinte e dois
anos abruptamente interrompidos, sem qualquer explicação.
“Henrik aprendia com facilidade, Konrád com
alguma dificuldade”.
“Henrik movia-se também com naturalidade na sociedade, despreocupadamente e com superioridade, como se o mundo já não o pudesse apanhar de surpresa; Konrád era rígido e cumpridor de regras”. O primeiro tinha estatuto, bens e poder, o segundo era pobre. “Konrád tinha um refúgio, para onde o amigo não o podia seguir: a música”.
“Henrik movia-se também com naturalidade na sociedade, despreocupadamente e com superioridade, como se o mundo já não o pudesse apanhar de surpresa; Konrád era rígido e cumpridor de regras”. O primeiro tinha estatuto, bens e poder, o segundo era pobre. “Konrád tinha um refúgio, para onde o amigo não o podia seguir: a música”.
Como
o pai do general previa, o amigo do seu filho nunca seria um verdadeiro
soldado. Porque era diferente.
“Nada é tão raro ente jovens como uma
afeição desinteressada que não pretende do outro nem ajuda nem sacrifício”.
“E porque gostavam um do outro, ambos
perdoavam ao outro o pecado original: Konrád perdoava ao amigo a riqueza, o
filho do oficial da guarda perdoava a Konrád a pobreza”.
Entre
ambos interpôs-se Krisztina, mulher de Henrik. A rutura, a morte e a solidão tinham
chegado.
Quando
pressentem o fim das suas vidas, quarenta e um anos e quarenta e três dias
depois da partida, ou fuga, de Konrád, encontram-se em casa do velho general, num
jantar em que tudo é disposto da mesma forma que na última noite em que
estiveram juntos. As velas acesas eram também azuis. Nada destoava naquele
ambiente solene e festivo, a não ser eles mesmos, já com setenta e três anos de
idade e um segredo para ser revelado. O general desempenha então o papel
semelhante ao de um psicanalista, iluminando com inteligência e perspicácia
intelectual os recantos mais obscuros da mente. A reflexão que conduz, pedagogicamente,
lembra-me a Maiêutica de Sócrates, partindo do princípio “Só sei que nada sei”,
ao colocar Konrád, perante questões para as quais procura as respostas, que
afinal ambos conhecem ou intuem.
Quando
a velha ama, Nini, pergunta ao general o que pretende daquele homem, ele
responde: a verdade.
“Conheces bem a verdade.
- “Não conheço”…. “É mesmo a verdade que não
conheço”
- “Mas conheces a realidade – disse a ama”(…)
A
subtil distinção entre verdade e realidade é logo por ele esclarecida.
- “A realidade é apenas um pormenor.”
- “A realidade é apenas um pormenor.”
A
revelação que, então, a ama lhe faz tem o poder de acalmar o seu coração e será
determinante na conversa com o amigo. As diferenças entre ambos não se
atenuaram com o tempo. Se para Konrád o mundo a que ambos tinham prestado
juramento já não existia e não tinha nada a ver com o novo, para o general,
esse mundo vivia, mesmo que na realidade tivesse deixado de existir, porque
tinha jurado lealdade. A amizade para ele significava ainda mais do que a
honra, era a “relação mais forte na vida”. Falando, como se fosse no passado,
porque entre ambos tinha existido uma traição, cujo motivo ele queria apurar,
diz:
“A
amizade, pensava eu – e tu, que andaste mais pelo mundo fora, certamente sabes
mais e melhor que eu, aqui na minha solidão campestre -, é a relação humana mais
nobre que pode haver entre os seres vivos humanos”.
Conhecia
os factos, tinha pressentido, mais do que presenciado, o que se passara atrás
de si naquele dia, na caça, e na casa de Konrád, que era frequentada por Krisztina
em segredo e cuja existência ignorava. O importante para o general era a razão
que estava na origem das ações, o motivo, porque: “A intenção é tudo.”
Sándor
Márai desenvolve uma reflexão ética sobre os sentimentos, a culpa, a amizade e
a paixão, de uma forma luminosa, com uma linguagem que se deixa tocar pela
poesia, sem deixar de seguir um processo de desvendamento lógico da verdade. É
por isso que a mim me parece ver em todo este romance uma extraordinária
abordagem filosófica que nos coloca perante as questões fundamentais a que todos
acabamos por responder com a nossa vida.
À
medida que vai falando, sempre baixo e com cortesia, confrontando Konrád com os
factos, e a sua interpretação, que ele não confirma mas também não nega, o
general vai esclarecendo as suas próprias dúvidas.
“Existem
momentos em que já não é noite e ainda não é dia no coração humano, quando as
feras saem dos esconderijos sombrios da alma, quando estremece no nosso coração
e se transforma em movimento na nossa mão uma paixão que formámos e
domesticámos em vão durante anos, às
vezes durante muito tempo…”
A
realidade, simplesmente, era que Konrád o tinha odiado durante vinte e dois
anos. Odiava-o porque o Henrik tinha qualquer coisa que a ele faltava e o
desejo de ser diferente daquilo que somos “é a maior tragédia com que o destino
pode castigar o homem.”
“Temos
de suportar o nosso caráter, o nosso temperamento”. “Temos de suportar que os
nossos desejos não tenham plena repercussão no mundo. Temos de suportar que as
pessoas que amamos não nos amem ou que não nos amem como gostaríamos. Temos de
suportar a traição e a infidelidade, temos de suportar a superioridade moral ou
intelectual de uma outra pessoa”.
No
final do jantar e da noite tudo começa a ficar claro. A dor insuportável da
traição parece ter-se esbatido. O “fogo purificador do tempo extraiu das
recordações toda a ira”. Tudo tinha sido relativizado. Tinha havido traição do
amigo e da mulher? Seria possível que tivessem congeminado ambos a sua morte? O
general tinha vivido na mais amarga solidão e, contudo, tinha sentido até pena
dos dois. Eles podiam comprazer-se na perfídia mas não podiam evitá-lo,
porque os três estavam “tão unidos como os cristais, segundo uma lei
geométrica”. Olha o passado cheio de piedade. E, contudo, quando faz a pergunta
que, durante os seus derradeiros quarenta e três anos de vida o atormentara,
não dá ao seu convidado a hipótese de responder, corta-lhe a palavra e continua
a falar. Retira-lhe o possível alívio que sentiria com a confissão. E, também,
que importava, agora, isso? No seu íntimo conhecia as respostas.
O
diário de Krisztina, onde a resposta possível às dúvidas dos dois homens se
poderia encontrar, jazia agora nas cinzas da lareira. Nem um nem outro descobririam
os motivos dela. Konrád, Krisztina e ele próprio tinham sido movidos pela
paixão, “que um dia invade o nosso coração, a nossa alma e o nosso corpo e
depois arde para sempre até à morte”. O general faz então uma última pergunta,
que contém si várias outras para as quais afirma não conhecer a resposta, apesar
de ter vivido tudo e visto tudo: Será verdade que “se nós vivermos essa paixão
talvez não tenhamos vivido em vão?’
- Para
que perguntas? – diz-lhe Konrád. “Sabes que é assim”
Tinha
chegado a hora para os dois. Apesar de tudo e da própria verdade, continuavam
amigos. Tinham esperado quarenta e três anos e três dias e nenhum tinha faltado
ao encontro final. Agora, podiam receber a morte, com a solidão por companhia,
um em Londres, o outro no seu castelo de caça no interior da floresta húngara.
Já não deviam nada um ao outro nem à vida.
A despedida
é feita em silêncio, com um aperto de mão e uma reverência profunda. Olham-se
demoradamente. São mais do que pares, amigos.
Na
sala de jantar, as velas tinham ardido até ao fim.
22
de julho de 2016
Maria
Teresa Sampaio.
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