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sexta-feira, 22 de julho de 2016

“As velas ardem até ao fim” – Sándor Márai.

Não cometo nenhum exagero se disser que este é um dos mais belos romances da literatura universal. Encoberto durante muitos anos pela “Cortina de Ferro”, proibido no seu país, a Hungria, só chegaria às mãos dos leitores em todo o mundo, depois da queda do Muro de Berlim. Mas a vida, por vezes, tem momentos sombrios, e o autor deste extraordinário romance sobre a amizade não chegou a presenciar aqueles tempos libertadores. Suicidou-se poucos meses antes, na Califórnia (Estados Unidos) para onde tinha emigrado.

Escrever sobre esta obra é para mim uma necessidade, mas também uma espécie de tormento, porque sei que não conseguirei fazer-lhe justiça. O patamar em que o autor se encontra é infinitamente superior, para já, do ponto de vista literário, e, depois, em sabedoria, capacidade de penetração psicológica na mente própria e do outro e experiência de vida. Com tantos limites, como me atrevo? É um dever de leitora atenta? Talvez. Quando terminei a sua leitura, interrompida múltiplas vezes para meditar sobre as interpelações que Sándor Márai nos faz, fiquei cativa de um fascínio que me cativou e me fez voltar a ele. Li, logo de seguida, outro livro e, dois dias depois, aí estava eu de novo, completamente enfeitiçada por aquele general, que comanda as outras personagens e a nós também. Não, certamente, pelas armas, mas pela magistral lição de vida que dá, pela extrema sensibilidade e inteligência. E ainda pela dialética que imprime no diálogo – ou será monólogo? – com o seu melhor amigo, para apurar a verdade.
Henrik e Konrád são dois amigos, quase como irmãos, embora muito diferentes, que vão juntos para o colégio militar e vivem uma amizade, tendo como pano de fundo a desagregação do império Austro-Húngaro, a I Guerra Mundial e o início da segunda. Logo nas primeiras páginas, o autor alerta-nos para a delicadeza dessa relação, muito embora diga: “Os dois rapazes sentiam que viviam numa condição maravilhosa, sem nome, num certo estado de graça”. Viveram juntos, no colégio, nas férias, no Natal, uma parte importante das suas vidas. Foram vinte e dois anos abruptamente interrompidos, sem qualquer explicação.
   “Henrik aprendia com facilidade, Konrád com alguma dificuldade”.
   “Henrik movia-se também com naturalidade na sociedade, despreocupadamente e com superioridade, como se o mundo já não o pudesse apanhar de surpresa; Konrád era rígido e cumpridor de regras”. O primeiro tinha estatuto, bens e poder, o segundo era pobre. “Konrád tinha um refúgio, para onde o amigo não o podia seguir: a música”.
Como o pai do general previa, o amigo do seu filho nunca seria um verdadeiro soldado. Porque era diferente.

   “Nada é tão raro ente jovens como uma afeição desinteressada que não pretende do outro nem ajuda nem sacrifício”.
  “E porque gostavam um do outro, ambos perdoavam ao outro o pecado original: Konrád perdoava ao amigo a riqueza, o filho do oficial da guarda perdoava a Konrád a pobreza”.

Entre ambos interpôs-se Krisztina, mulher de Henrik. A rutura, a morte e a solidão tinham chegado.

Quando pressentem o fim das suas vidas, quarenta e um anos e quarenta e três dias depois da partida, ou fuga, de Konrád, encontram-se em casa do velho general, num jantar em que tudo é disposto da mesma forma que na última noite em que estiveram juntos. As velas acesas eram também azuis. Nada destoava naquele ambiente solene e festivo, a não ser eles mesmos, já com setenta e três anos de idade e um segredo para ser revelado. O general desempenha então o papel semelhante ao de um psicanalista, iluminando com inteligência e perspicácia intelectual os recantos mais obscuros da mente. A reflexão que conduz, pedagogicamente, lembra-me a Maiêutica de Sócrates, partindo do princípio “Só sei que nada sei”, ao colocar Konrád, perante questões para as quais procura as respostas, que afinal ambos conhecem ou intuem.
Quando a velha ama, Nini, pergunta ao general o que pretende daquele homem, ele responde: a verdade. 
   “Conheces bem a verdade.
 - “Não conheço”…. “É mesmo a verdade que não conheço”
 - “Mas conheces a realidade – disse a ama”(…)
A subtil distinção entre verdade e realidade é logo por ele esclarecida.
  - “A realidade é apenas um pormenor.”
A revelação que, então, a ama lhe faz tem o poder de acalmar o seu coração e será determinante na conversa com o amigo. As diferenças entre ambos não se atenuaram com o tempo. Se para Konrád o mundo a que ambos tinham prestado juramento já não existia e não tinha nada a ver com o novo, para o general, esse mundo vivia, mesmo que na realidade tivesse deixado de existir, porque tinha jurado lealdade. A amizade para ele significava ainda mais do que a honra, era a “relação mais forte na vida”. Falando, como se fosse no passado, porque entre ambos tinha existido uma traição, cujo motivo ele queria apurar, diz:
“A amizade, pensava eu – e tu, que andaste mais pelo mundo fora, certamente sabes mais e melhor que eu, aqui na minha solidão campestre -, é a relação humana mais nobre que pode haver entre os seres vivos humanos”.
Conhecia os factos, tinha pressentido, mais do que presenciado, o que se passara atrás de si naquele dia, na caça, e na casa de Konrád, que era frequentada por Krisztina em segredo e cuja existência ignorava. O importante para o general era a razão que estava na origem das ações, o motivo, porque: “A intenção é tudo.”

Sándor Márai desenvolve uma reflexão ética sobre os sentimentos, a culpa, a amizade e a paixão, de uma forma luminosa, com uma linguagem que se deixa tocar pela poesia, sem deixar de seguir um processo de desvendamento lógico da verdade. É por isso que a mim me parece ver em todo este romance uma extraordinária abordagem filosófica que nos coloca perante as questões fundamentais a que todos acabamos por responder com a nossa vida.
À medida que vai falando, sempre baixo e com cortesia, confrontando Konrád com os factos, e a sua interpretação, que ele não confirma mas também não nega, o general vai esclarecendo as suas próprias dúvidas.

“Existem momentos em que já não é noite e ainda não é dia no coração humano, quando as feras saem dos esconderijos sombrios da alma, quando estremece no nosso coração e se transforma em movimento na nossa mão uma paixão que formámos e domesticámos  em vão durante anos, às vezes durante muito tempo…”
A realidade, simplesmente, era que Konrád o tinha odiado durante vinte e dois anos. Odiava-o porque o Henrik tinha qualquer coisa que a ele faltava e o desejo de ser diferente daquilo que somos “é a maior tragédia com que o destino pode castigar o homem.”
“Temos de suportar o nosso caráter, o nosso temperamento”. “Temos de suportar que os nossos desejos não tenham plena repercussão no mundo. Temos de suportar que as pessoas que amamos não nos amem ou que não nos amem como gostaríamos. Temos de suportar a traição e a infidelidade, temos de suportar a superioridade moral ou intelectual de uma outra pessoa”.

No final do jantar e da noite tudo começa a ficar claro. A dor insuportável da traição parece ter-se esbatido. O “fogo purificador do tempo extraiu das recordações toda a ira”. Tudo tinha sido relativizado. Tinha havido traição do amigo e da mulher? Seria possível que tivessem congeminado ambos a sua morte? O general tinha vivido na mais amarga solidão e, contudo, tinha sentido até pena dos dois. Eles podiam comprazer-se na perfídia mas não podiam evitá-lo, porque os três estavam “tão unidos como os cristais, segundo uma lei geométrica”. Olha o passado cheio de piedade. E, contudo, quando faz a pergunta que, durante os seus derradeiros quarenta e três anos de vida o atormentara, não dá ao seu convidado a hipótese de responder, corta-lhe a palavra e continua a falar. Retira-lhe o possível alívio que sentiria com a confissão. E, também, que importava, agora, isso? No seu íntimo conhecia as respostas.

O diário de Krisztina, onde a resposta possível às dúvidas dos dois homens se poderia encontrar, jazia agora nas cinzas da lareira. Nem um nem outro descobririam os motivos dela. Konrád, Krisztina e ele próprio tinham sido movidos pela paixão, “que um dia invade o nosso coração, a nossa alma e o nosso corpo e depois arde para sempre até à morte”. O general faz então uma última pergunta, que contém si várias outras para as quais afirma não conhecer a resposta, apesar de ter vivido tudo e visto tudo: Será verdade que “se nós vivermos essa paixão talvez não tenhamos vivido em vão?’
- Para que perguntas? – diz-lhe Konrád. “Sabes que é assim”

Tinha chegado a hora para os dois. Apesar de tudo e da própria verdade, continuavam amigos. Tinham esperado quarenta e três anos e três dias e nenhum tinha faltado ao encontro final. Agora, podiam receber a morte, com a solidão por companhia, um em Londres, o outro no seu castelo de caça no interior da floresta húngara. Já não deviam nada um ao outro nem à vida.


A despedida é feita em silêncio, com um aperto de mão e uma reverência profunda. Olham-se demoradamente. São mais do que pares, amigos.

Na sala de jantar, as velas tinham ardido até ao fim.


22 de julho de 2016


Maria Teresa Sampaio.






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