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terça-feira, 26 de julho de 2016

O Fim de Semana – Bernhard Schlink

Durante um fim de semana, um grupo de velhos amigos, já bem inseridos na sociedade, reúne-se para celebrar a libertação de Jörg, companheiro de lutas estudantis, condenado por terrorismo  e quatro homicídios, que cumpriu vinte e quatro anos de pena. Escrito em 2008, este romance não podia ser mais atual.

Quase todos eles tinham sido esquerdistas. Emprego aqui este termo, no sentido que Lenine lhe atribuiu em “Esquerdismo, doença infantil do comunismo”, no qual refere precisamente alguns "comunistas de esquerda" da Alemanha, acusando-os de desvio ideológico. Esta polémica reacendeu-se nos anos setenta e teve particular incidência na Alemanha, onde  em 1975 começaram a ser julgados os líderes da RAF (Fração do Exército Vermelho).

“-Os outros tipos da RAF desistiram humilhantemente e choraram e lamentaram o que fizeram e pediram desculpa, tu não. Não fazes ideia da autoridade que tens”, diz Marko, um jovem militante da extrema-esquerda, que se juntou ao grupo com o intuito de chamar Jörg de novo para a luta. -“Mas nós precisamos de ti. Não sabemos como combater o sistema”.

Bernhard Schlink, que foi juiz do Tribunal Constitucional e Professor universitário de Direito Político e de Filosofia do Direito e, portanto, se move com à-vontade nestas áreas, aproveita para aludir ao braço armado do Islão radical e à extrema direita, cujas ações têm, na prática, idênticos efeitos.

“[…] juntamente com os nossos camaradas muçulmanos, poderíamos fazer algo importante. Eles com o seu poder e nós com aquilo que sabemos deste país, juntos, poderíamos atacar no sítio que lhes dói mesmo. Mas depois aparecem aqueles que dizem que não querem juntar-se a eles; nesse caso poderíamos juntar-nos com a Direita, e há quem o sugira, e além disso há as velhas discussões que tu já ultrapassaste, se se deve empregar violência contra pessoas e contra coisas ou se não se deve empregar violência nenhuma, nós precisamos de alguém com autoridade.”

Jörg, o irmão de Christiane , tinha acabado de sair da prisão horas antes, e mal tivera tempo de saborear a liberdade, quando um dos seus antigos companheiros, Ulrich, que era de todos o que mais se tinha  “aburguesado”, o metralhava com perguntas sobre a sua antiga forma de vida, com uma agressividade quase bélica,  que a todos deixava incomodados.
Karin, bispa de uma igreja evangélica, tentava acalmar os ânimos e pedia que deixassem o antigo “combatente” em paz, mas Ulrich não descansava, apenas antecipando o que se iria passar surpreendentemente, depois, com um jovem educado, “historiador de arte”, de quem todos se tinham esquecido no calor da discussão.
Ulrich  continuava a fazer  perguntas incómodas:

“-Deixá-lo em paz? O que ele teve de sobra nos últimos anos foi paz. Ele tem entre cinquenta e cinco e sessenta anos, tal como todas nós, e a vida dele foi…Como é que vocês a querem descrever? Assaltar bancos e matar gente; terrorismo, revolução e prisão, foi essa vida que ele escolheu. E eu não posso perguntar-lhe como é que foi? (…) Que ele tenha matado quatro pessoas… Se isso não é motivo suficiente  para matar uma amizade, também não o é para termos de calçar luvas quando lhe quisermos tocar.”

A luta armada “contra a violência do Estado” “opressor”, os “danos colaterais” , a sociedade burguesa e o “projeto de esquerda” foram tópicos abordados durante as refeições, até chegar a vez das memórias dos sonhos juvenis  e das peripécias inofensivas das lutas estudantis.  Todos repetiam “ainda se lembram?” e brindavam à amizade que os unia ainda. Quando se olhavam ainda viam os rostos de antigamente e sentiam carinho pelos traços atuais que descobriam. Mas, nem todos pensavam assim, entre eles o jovem estudante de arte, de cuja presença nem se tinham apercebido, no entusiasmo das memórias ainda vivas, soltou uma gargalhada sarcástica e lançou uma autêntica “bomba” ao comparar o grupo de amigos com os velhos nazis pertencentes às SS e interpelando diretamente Jörg, tratando por papá com todo desprezo de que era capaz. Ninguém reparara nas parecenças entre ambos, nem o próprio pai, que ficara petrificado. Chamava-se Ferdinad Bartholomäus, em honra dos anarquista italianos, Nicola Sacco e Bartolomeo Vanzetti, condenados à pena de morte e executados nos Estados Unidos. Tinha sido educado pelos avós depois de a mãe se ter suicidado, quando ele tinha seis anos. Olhava o pai sem temor, com ódio  e lançava-lhe em cara o facto de conhecer os filhos dos homens que ele tinha assassinado:

-“Tu devias saber o que significa ser filho de um assassino e tu tornaste-te um pai assassino, o meu pai assassino”.

De súbito, a conversa amigável tinha mudado completamente de rumo. Todos sentiam o horror da situação, mas não conseguiam fazer nada para a consertar. O pai - e a sua ideologia política - estava, como num tribunal, a ser julgado sumariamente pelo filho. Implacavelmente. Não podia fugir ao seu passado, do qual não se arrependia nem lamentava e até assumia com orgulho:

-“Tu não és capaz de sentir dor como os nazis não o eram. Não és nem um bocadinho melhor do que eles, nem quando mataste pessoas que não te tinham feito mal nenhum, nem quando, depois de o fazeres, não conseguiste compreender aquilo que tinhas feito.”

Bernhard Schlink não se esquece de que a geração de Jörg é a mesma que se indignava contra a geração dos pais, a da II Guerra Mundial, por ter pactuado com os nazis, ativa ou passivamente. Fala dela no seu romance anterior,  “O Leitor”.  Neste , encarrega o jovem Ferdinand de o recordar ao pai:

-“Vocês irritavam-se com a geração dos vossos pais, a geração dos assassinos, mas vocês tornaram-se precisamente iguais a eles. “

O pai não consegue argumentar com o filho, estavam ambos em patamares muito diferentes, praticamente incomunicáveis, e apenas é capaz de dizer que já pagou por tudo, mas melhor teria sido que o não dissesse. O filho lembra-lhe:

-“Vinte e quatro anos por quatro assassinatos? Uma vida vale apenas seis anos? Tu não pagaste por aquilo que fizeste, tu perdoaste-te por isso. (…) “Mas são apenas os outros que podem perdoar. E esses não te perdoam.”

E, a terminar acusa-o de também ter morto, indiretamente, a mãe, ao abandoná-la. Jörg viu no filho a mesma inflexibilidade que ele tinha naquela idade e pensou “na maneira como a desgraça se reproduz”. O choque geracional era evidente, mas Jörg não o via, sentia-se injustiçado. Estava ainda imbuído dos conceitos esquerdistas do seu tempo que, ali já tinham sido ultrapassados pelos seus amigos e que apenas o jovem Marko partilhava. Nem reparava que se colocava na mesma posição do filho quando se opunha aos pais, embora divergisse nos motivos e na prática. Invocava a situação que tinha divido a Alemanha no pós-guerra (II Guerra Mundial) na esperança de ser compreendido, de lançar uma ponte ao filho:

-“Os nossos pais acomodaram-se e tinham evitado reagir, nós não podíamos fazer a mesma coisa. Era simplesmente impossível continuar a ver as crianças a arder por causa do napalm no Vietname, a morrer de fome em África, a serem espancadas nas instituições”.

Tinham de lutar, dizia, contra um Estado que reprimia quem pensava de maneira diferente, que isolava espancava, torturava, os seus camaradas e ele  também.

-“A resistência contra um sistema violento não é possível sem violência”, rematou.

Claro que entendia que a sua luta não podia ter “conduzido à vitória”, que tinha cometido erros, mas isso não implicava baixar os braços,  pactuar com o poder ou vender-se. Devia ter-se empenhado noutra luta, que não sabia bem qual era.
Escutavam-no com embaraço e perplexidade, pensando que ele continuava como há trinta anos atrás, com o mesmo discurso radical, aprisionado nos seus conceitos. Mas, o filho não lhe deu tréguas.  A questão das vítimas inocentes não podia deixar de ser debatida. Jörg defendia que seriam justificadas se, através da revolução, se tivesse criado um mundo melhor e mais justo. O filho olhava, horrorizado para o pai como quem olha para um monstro, com o qual é impossível existir pontos comuns. Incrédulo com a incompreensão do filho, Jörg exclamou:

-“Mas tu não podes achar que o sacrifício de vítimas inocentes nunca se justifica! Se se tivesse conseguido matar Hitler, de tal maneira que também houvesse inocentes…

A resposta não se fez esperar:

- “Essa é uma exceção. Vocês transformaram a exceção em regra.”

Estava praticamente tudo dito entre eles. Faltavam duas revelações finais.  Amargurado, Jörg confessa ao grupo e à irmã que lhe resta pouco tempo de vida porque tem um cancro, descoberto na prisão, já tarde demais.

“Eu devia ter morrido num tiroteio qualquer há vinte e cinco anos “.

Foi então que a irmã, que sempre o tinha protegido e ajudado, revelou que o tinha denunciado anonimamente à polícia, “para que isso não acontecesse” , porque já não aguentava o medo que tinha por ele e queria e não queria que morresse assim.
O fim de semana estava no fim. Entre o grupo de amigos tinham-se esboçado duas relações amorosas, mas Bernhard Schlink pouca atenção dá a estes casos. As personagens são descritas pelos seus atos, não pelos sentimentos ou emoções. A força deste romance está, mais uma vez, no embate de gerações, mas principalmente na denúncia dos ideais revolucionários esquerdistas na Alemanha,  que, perigosamente,  estiveram na génese do terrorismo e ainda na demonstração de como a intolerância não desapareceu com a morte de Hitler, quase parecendo, aqui, entre pai e filho um elo hereditário, que facilmente se transpõe para a sociedade e a política.

Julho de 2016
Maria Teresa Sampaio







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