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sábado, 16 de julho de 2016

O Leitor - Bernhard Schlink


A reflexão que Bernhard Schlink desencadeia em "O Leitor" é, para mim, o aspeto mais valioso deste romance, embora tudo seja narrado com o distanciamento de um jurista. Aliás ele próprio adverte, num comentário, em entrevista à editora Record, sobre a adaptação cinematográfica que foi realizada por Stephen Daldry:

 “Deixe-me enfatizar mais uma vez: “O leitor” não é um livro sobre nacional-socialismo nem sobre o Holocausto. É um livro sobre a relação entre a geração do pós-guerra e a geração da guerra, sobre a implicação da geração pós-guerra na culpa da geração da guerra, e sobre a implicação na culpa em geral. O escritor americano Joyce Hackett achou uma resposta inteligente para a pergunta sobre por que os filmes americanos estiveram tão intensamente preocupados com o Terceiro Reich e o Holocausto em tempos recentes: ela argumenta que depois dos anos moralmente ambíguos de Bush, há uma grande demanda por problemas morais com respostas definitivas, por imagens claras e fortes do bem e o mal. Visto dessa forma, também, “O leitor”, que lida com problemas morais, tensões e conflitos, não se encaixa nessa faixa de filmes americanos. “


 Não, de facto, Schlink não opta por imagens fortes. Michael, o protagonista, autocritica-se e a certa altura considera “repulsivo” o entusiasmo com que ele e os seus colega do seminário do curso de Direito, sobre criminosos de guerra, descobriam “os horrores do passado” e o queriam divulgar, envolvendo-se num processo de revisão do mesmo e de esclarecimento, que “pretendia ser a condenação” da geração dos pais “à vergonha eterna”, ou, pelo menos, a geração que se serviu dos guardas e dos esbirros, ou que não os impediu, ou que pelo menos não os marginalizou como deveria ter feito depois de 1945.
Com uma atitude quase sempre filosófica e interrogativa perante a realidade, o protagonista afirma: “Não devemos aspirar a compreender o que é incompreensível, nem temos o direito de comparar o que é incomparável, nem de fazer perguntas, porque aquele que pergunta, ainda que não ponha em dúvida o horror, torna-o objeto de comunicação em vez de o assumir como algo perante o qual só se pode emudecer de espanto, de vergonha e de culpa”. Penso, contudo, que a dimensão do horror e dos atos criminosos perpetrados por seres humanos sobre outros e o consequente número de mortos, nunca antes registado na Europa dita civilizada, implica que o seu conhecimento seja divulgado e explicada a sua origem, para que nunca mais seja sequer tentado. O pavor e o espanto não nos devem emudecer, nem manietar o pensamento e, muito menos, retrair ou paralisar.
Pode acontecer que a culpa da geração dos filhos daqueles que viveram a guerra e o tempo imediatamente a seguir a ela se torne redentora, na medida em que dela germinem pensamentos e comportamentos verdadeiramente respeitadores da dignidade humana e da Declaração Universal dos Direitos do Homem proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas na sua Resolução 217A (III) de 10 de Dezembro de 1948.

O perigo reside, precisamente, em nos deixarmos imobilizar pelo espanto, a vergonha e a culpa. Acontece então o que Bernhard Schlink designou por “embotamento geral”, que, no romance, afetava criminosos e vítimas, juízes e jurados. Todos, sem exceção.

O fenómeno do “embotamento”, que provoca a indiferença e a apatia perante a descrição dos crimes nazis executados nos campos de concentração é descrito pelo autor como a única forma possível de se regressar à vida normal. Embora não mencionada, a noção de banalização do mal, de que falou Hannah Arendt, está aqui presente, quando Shhlink refere que os carrascos ficam completamente desprovidos de escrúpulos, “num embotamento semelhante ao dos anestesiados ou bêbados.”
O mais complexo e perigoso é o facto de quase nos parecer que não é apenas o protagonista do romance (Historiador de Direito), mas também o escritor (Juiz do Tribunal Constitucional e Professor de Direito Público), ambos com carreiras em Direito, que são invadidos por uma névoa, um amolecimento que condiciona os seus juízos.

A própria relação entre Michael e Hanna, quando se reencontram, parece contaminada pelo “embotamento”. O amor que o Miúdo sentira por aquela mulher muito mais velha, fria e distante, que o seduzira no começo da sua adolescência, e por quem ele se apaixonara, não resistira à culpa e ao “embotamento”. Restou, da parte dele a lealdade e a vontade de compreender, e condenar o que ela tinha feito. Mas não conseguiu assumir e resolver essa dicotomia. Um “grande vazio” habitava-o, como se dentro dele não houvesse vida. A própria narrativa é isenta de paixão, reduzida à sua expressão mais simples. A atmosfera é cinzenta e fria e tudo contado ao ritmo de um Historiador de Direito, que estudou as leis e os factos para os expor na primeira pessoa, sem, contudo, se envolver.
O mérito deste romance, a meu ver, reside nas questões profundas e perturbadoras com que de Bernhard Schlink nos desassossega e para as quais nem sempre encontra resposta como se também ele estivesse imbuído do fenómeno de “embotamento”.

9 de julho de 2016
Maria Teresa Sampaio


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