Se há um quadro com história,
este é um deles.
Para mim, é a mais bela obra
sobre a crucificação, do século XX e talvez de sempre. A menos convencional. A
mais simbólica e transcendental. Inevitavelmente, a mais espiritual e mística.
Antes de passar aos
antecedentes e à história em si, olhemos bem para o Cristo de S. João da Cruz,
de Dalí.
Nada nele aponta para o
sofrimento absoluto, para a dor lancinante que foi infligida a Cristo. Nada nos
remete para a crueza e o sadismo das torturas. Nada nos convoca para o horror
de uma morte infligida sem piedade. Nem sequer o rosto de Cristo é visível,
para nos ajudar a imaginar o seu sofrimento.
Olhemos.
O que nos diz o olhar?
A cruz e Cristo formam um todo,
que já não faz parte deste mundo.
Ascende num claro-escuro,
sobre a estranha calma de uma baía, a de Porto Lligat, onde o pintor vivia.
Os braços de Cristo formam um
triângulo com a cruz, estando a cabeça no centro. Temos a sensação de estar a admirá-lo de um plano superior, que nos permite, até, ver as suas espáduas
iluminadas, cuja sombra se projeta na cruz. A cabeça descaída, de cabelo curto,
contrariamente às imagens, que, até então, o representavam, é como que o
vértice deste triângulo místico. Da parte ierior do corpo pouco mais se vê.
As mãos desenhadas maiores e
os pés mais pequenos contribuem para nos sugerir que Cristo sai do quadro.
Mas também podemos estar a
olhá-lo de terra. Ou até do meio, entre a paisagem e o Cristo crucificado.
Verdadeiramente, não existe um lugar para nós. Onde se pode situar o
observador? Em parte alguma. Não há propriamente um lugar para ele e é esse
lado impossível, incontido que Dalí apreendeu. Conseguir realizá-lo numa tela é
verdadeiramente espantoso.
Olhemos de novo. A ideia de
infinito aflora-nos. Ao ocupar a parte superior da tela com a cruz, Dalí
conseguiu esse intento.
Cristo já não é, ou nunca foi,
deste mundo.
Parece flutuar, porque nada o
prende à cruz e esta também se desprende da terra.
Ao olhar para baixo, para a
parte terrena do quadro, Cristo vê exatamente a fonte de sofrimento e dor, de
que já não participa.
É a redenção que se adivinha.
E essa luz que o banha torna-o
simultaneamente real e irreal.
É carne e alma, morte e
renascimento.
É uma imagem portadora de
Esperança.
Nunca ninguém representara
assim a crucificação.
Salvador Domingo Felipe
Jacinto Dalí i Domènech, 1º Marquês de Dalí de Púbol, conhecido apenas como
Salvador Dalí, nasceu a 11 de maio de 1904, em Figueres, Catalunha, Espanha. e morreu, aos 84 anos, no mesmo
local de nascimento, a 23 de janeiro de 1989.
Quando estalou a Guerra Civil
de Espanha, Dalí partiu para os Estados Unidos, de onde só regressou, após a II
Guerra Mundial, quando Franco já se encontrava no poder. Com fama, e proveito,
de vermelho, anarquista, blasfemo, excêntrico e, em tudo, excessivo, inimigo da
moralidade burguesa, do patriotismo e anticlerical, naturalmente que lhe era
vedada a entrada na Espanha do caudilho. Tornou-se, então, católico, o que lhe facilitava a entrada em Espanha e favorecia a sua imagem aos olhos de Franco. Foi excluído do movimento surrealista, mas Dalí bem podia clamar que o
surrealismo era ele. Assim como também era simbolista. e hiper-realista. Assim como se tornou no último
dos místicos, representante de uma longa linhagem de místicos
espanhóis.
Fortemente abalado pela bomba atómica
de Hiroxima, admirador da Teoria da Relatividade e da Mecânica Quântica, Dalí
afirmou que um “sonho cósmico” lhe revelou, em 1950, que o núcleo do átomo - a
própria unidade do Universo - é Cristo.
“A explosão atómica de 6 de Agosto de 1945 tinha-me abalado sismicamente. […] Quero ver e compreender a força das leis ocultas das coisas, para me tornar mestre delas. Para penetrar no coração da realidade, tenho a intuição genial que disponho de uma arma extraordinária: o misticismo, ou seja a intuição profunda do que é, a comunicação imediata com o todo, a visão absoluta, pela graça da verdade, pela graça divina.”(1)
A partir de 1949 e durante a década seguinte, atravessa a
etapa mística e nuclear da sua vida, cujo corpo teórico está contido no
Manifesto Místico e que se caracteriza
pela aparição de temas religiosos e outros, relacionados com os avanços científicos da época, em particular os progressos da fusão e fissão nucleares.
Dalí anunciava a morte do academismo.
Reclamava para si o êxtase, à
imagem e semelhança de Santa Teresa de Ávila, e a capacidade de “olhar a beleza
nos olhos.”
Foi nesse estado intensamente
profético, que compreendeu “que os meios de expressão pictóricos foram
inventados, de uma vez por todas, com o máximo de perfeição e eficácia, pelo
Renascimento e que a decadência da pintura moderna advinha do ceticismo e da
falta de fé, ambos consequência do materialismo mecanicista”.(2)
“Eu, Dali, reatualizando o misticismo espanhol, vou provar, através da minha obra, a unidade do universo, mostrando a espiritualidade em toda a sua substância”(3)
Entretanto, conheceu o padre Carmelita, Bruno de Jesus Maria, que privava com artistas e intelectuais e lhe deu a conhecer um notável desenho da crucificação, de há quase 400 anos, que tinha sido realizado por um monge num momento de êxtase. Tratava-se de S. João da Cruz, que, no século XVI se tornou um dos mais importantes místicos da Igreja Católica. O seu desenho, num pedaço de papel, preservado pelos monges do Mosteiro de Ávila, até aos nossos dias, é, mesmo de acordo com as normas da arte moderna, verdadeiramente extraordinário e não está muito longe do surrealismo.
A primeira vez que viu esse
desenho, ficou de tal maneira impressionado, que, mais tarde, na Califórnia, teve
uma visão:
“Vi Cristo em sonhos, na mesma
posição mas na paisagem de Port Lligat e ouvi vozes que me diziam: ”Dalí tens
de pintar esse Cristo!”
Inicialmente, tinha
intenção de incluir na tela os habituais atributos da crucificação, pregos,
sangue, coroa de espinhos, mas num segundo sonho apareceu-lhe apenas a beleza
metafísica de Cristo-Deus, despojado de tudo e em vez dos pescadores de Port
Lligat, uma figura extraída de uma pintura de Velásquez e outra de um desenho
de Le Nain.
Foi então que começou a
trabalhar geometricamente um triângulo e um círculo, que, esteticamente, resumem todas as experiências anteriores, e nesse triângulo inscreveu o seu Cristo, segundo escreveu no rodapé dos estudos para o Cristo de São João da Cruz. Em vários
desenhos vê-se a aproximação ao resultado final, no qual consegue obter a
perspetiva da levitação, de Cristo flutuando sobre a cruz e sobre nós, humanidade.
Para concretizar esta técnica
fotorrealista, Dalí conseguiu, (durante os anos que passou nos EUA) com a ajuda
de amigos influentes em Hollywood, que um duplo, Russel Saunders, posasse para
ele, preso a uma cruz, suspenso por cabos, do teto do estúdio, de forma a
conseguir o ângulo desejado para o desenho. Já em Espanha, trabalhou, então, sobre as várias
fotografias tiradas, traçando sobre elas as linhas que o levaram a encontrar o
ponto de fuga do horizonte e a dividir o quadro.
A cruz e Cristo formam um
todo, não violentamente cravado, mas livremente assumido. Há um jogo de
direções que se centram sobre esse Cristo-Deus que derrama a sua luz sobre o
mundo, curvando-se sobre o mar e os pescadores.
Disse Dali:
“A minha ambição estética para
este quadro era oposta a todos os Cristos pintados pela maioria dos pintores
modernos, que o interpretaram no sentido expressionista e contorcionista,
provocando a emoção através da fealdade. A minha principal preocupação era
pintar um Cristo belo como o próprio
Deus que ele encarna.”
De tudo isto resultou, eventualmente,
a obra mais humana e, contudo, mais irreal e mística que, alguma vez, se pintou
sobre a crucificação de Cristo.
Em 1951 o quadro foi exposto
pela primeira vez numa Galeria de Londres. As críticas foram humilhantes. Foi,
depois, exposto, na Glasgow Art Gallery e Dalí vendeu-o por 8.200 libras, cedendo
igualmente os direitos de autor, à Corporação da cidade de Glasgow. A polémica
sobre a sinceridade da sua visão religiosa não esmoreceu. No fim da sua vida, afirmou
numa entrevista que acreditava em Deus, mas não tinha fé e receava morrer sem a
alcançar.
O Céu, dizia, ”não se encontra
nem no alto, nem em baixo, nem à direita, nem à esquerda, o Céu está exatamente
no centro do peito do homem que tem fé.”
Cristão ou ateu, ninguém fica
indiferente a este quadro, o menos surrealista da obra de Dali, mas também
aquele em que melhor se expressa a técnica fotorrealista, e em que consegue aliar o misticismo de São João da Cruz a uma visão espiritualista do futuro.
“Desejo pintar “um Cristo que
seja a antítese absoluta do Cristo materialista e selvaticamente anti místico de
Grunewald”, disse Dali e conseguiu o seu sonho da forma menos convencional
possível, mas também a mais bela.
O “Cristo de São João da Cruz marcou
definitivamente o séc. XX e continua a convocar o nosso olhar, assombrado, para
uma imagem espiritual que se perspetiva numa nova forma de exploração espacial.
mts
(1), (2), (3), In Dali. Gille Néret, Le Monde, dans Le Musée du Monde, 2005, Série 2.
Fontes:
A Vida Privada das Obras
Primas: Cristo de São João da Cruz, de Salvador Dalí in http://www.hagah.com.br/
Wikipédia
http://unapizcadecmha.blogspot.pt/2013/11/el-cristo-de-san-juan-de-la-cruz-1951.html
http://www.artehistoria.jcyl.es/v2/obras/9639.htm
http://www.artehistoria.jcyl.es/v2/obras/9639.htm
Documentário: Salvador Dalí - Le
Christ de Saint Jean de la Croix, You Tube
http://oseculoprodigioso.blogspot.pt/
http://esteticavisualfavufg.blogspot.pt/2009/12/estetica-do-hiperrealismo.html
Magie des extremes, Les
Étudescarmélitaines. DDB.1952
Le fantastique angélique et
prophétique de Salvador Dali, dans Cahiers
de Bordeax. 1957.
Dali. Gille Néret, Le Monde, dans Le Musée du Monde, 2005, Série 2.
Cristo
de São João da Cruz. Salvador
Dalí. 1951.
Óleo sobre tela,
205x116 cm
The Glasgow Art Gallery
Desenho da Crucificação por São João da Cruz
2 comentários:
Realmente impressionante, e cada vez que se olha descobrem-se pormenores novos. Desconhecia o quadro, obrigada pela partilha tão rica e colorida.
E que tal um mestrado em história de arte, aí pertinho, na (minha)NOVA?
Apaixonei-me pela sua postagem.
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