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quinta-feira, 22 de maio de 2014

Velhinha menina.

Já foi jovem.
Os rapazes olhavam para ela com sorrisos malandros.
Namorou, como as raparigas do seu tempo, à janela e, escassas vezes, na rua.
Mais tarde casou e nada coincidiu com as promessas de amor eterno que ele lhe fez.
Sofreu maus-tratos físicos e psicológicos do marido, mas, naquele tempo, as mulheres não se queixavam. Sofriam em silêncio.
Teve filhos, que mal chegaram a adultos, saíram daquela casa, para escaparem ao ambiente de opressão, aos gritos, murros na mesa e à pancada que o pai dava na mãe, quando o vinho lhe toldava os sentimentos e o raciocínio.
De vez em quando, escreviam-lhe e mandavam-lhe as Boas-festas pelo Natal. Mas as cartas começaram a ser cada vez mais espaçadas e, lentamente, deixaram de escrever. Ela bem esperava, ansiosa, pelo carteiro, mas ele nada lhe trazia.
Os anos passaram. O branco de neve clareou-lhe o cabelo e as rugas do tempo sulcaram-lhe o rosto.
Quando o marido morreu, não verteu uma lágrima.
O senhorio começou a pressioná-la para pagar a renda de casa, mas ela não tinha dinheiro e já era muito velha para recomeçar a vida, que lhe fugia.
Foi posta na rua com meia dúzia de trapos, a que estavam reduzidos os seus haveres.
Curiosamente, não sofreu nem chorou.
Quando chegou à rua, sentiu-se, finalmente, livre.
Agora, a idade pesa-lhe. A cabeça atraiçoou-a e entretém-se a tecer histórias num mundo que é só seu. Já não compreende o tempo em que sobrevive. Os ossos doem-lhe, mas percorre as ruas lentamente, com os seus sacos, um velho e surrado sobretudo vestido, um lenço atado à cintura e outro amarrado em volta dos cabelos a lembrar a tímida vaidade de outros tempos.
Mantém um rosto de menina, debaixo das rugas, e um ar de triste abandono que nos enternece e emociona.
Quem a conhece, sempre a rondar os mesmos lugares, a dormir no mesmo canto da rua, entre caixas de cartão, ajuda-a com o que pode.
Ele já nem sabe agradecer. Ficou perdida nas suas memórias de infância, que ainda não se apagaram.
É uma menina velhinha…
Vem e vai com os pássaros brancos até ao fim da linha.


mts


Fotografia de Claire Martin

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