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terça-feira, 7 de janeiro de 2014

Banalidade do mal?

O mal não é, não pode ser, conceptualmente nem ontologicamente, banal. É, pelo contrário, o que de mais radical existe. Por isso está para além do nosso entendimento, da nossa imaginação, da nossa capacidade de verbalizar a realidade. Refiro-me, naturalmente, ao Holocausto e aos campos de concentração, no caso presente, mas poderia englobar, neste conceito, o regime estalinista.
Não existem na linguagem quotidiana termos adequados à narração do que ocorreu. Só talvez a poética ou a filosofia consigam tentar uma narrativa do horror. Porque nunca se tinha vivido nada de semelhante. Sabe-se bem o quanto custou aos sobreviventes tornar compreensível para os outros – os que escaparam aos campos e às gerações seguintes - a dimensão do terror que só eles viveram e testemunharam.
Antes de se chegar ao fim, à morte, passava-se por torturas impensáveis, por uma infinidade de escalas de dor, vivia-se um quotidiano inumano, irreal, que retirava aos condenados (judeus - na máxima escala - ciganos, homossexuais, deficientes, criminosos) a sua personalidade jurídica, o que constituía a sua primeira morte, mas também a sua pessoa moral. Os direitos do homem eram recusados e a identidade única do indivíduo esmagada. Aniquilados, atomizados, sem nada que os diferenciasse como seres humanos, reduzidos a uma massa imensa, silenciosa, destituída de vontade, sequer de um sinal de contestação ou revolta (recorde-se a estratégia de atribuir aos próprios judeus tarefas de organização nos campos, que tornava ardilosamente cúmplices carrascos e vítimas) os condenados marchavam para a morte, indiferentemente, como se nunca tivessem existido.
Este é o mal mais radical, mais absoluto, que consagrou o impossível, possível, que tornou o imperdoável simplesmente existente e todos os homens seres supérfluos, não existentes. Uma espécie de seres meramente objetos, sem nenhuma categoria possível.
Os responsáveis por semelhante terror, que na Alemanha nazi, quer na Rússia de Estaline, eram eles mesmos destituídos de vontade própria. “Tudo o que vocês são, são-no através de mim; tudo o que eu sou, sou-o somente através de vocês”, disse Hitler, num discurso perante a SA. A ideia de domínio permanente, quer do nacional-socialismo, quer do bolchevismo, em todas as esferas da vida de um indivíduo, em que até o pensamento era negado e o cumprimento indefectível de uma ordem era exigido, compreendia ainda uma devoção, um silêncio, e uma fidelidade totais, levadas às últimas consequências.
A palavra de Hitler, ainda que não escrita, tinha, para todos, força de lei. Aliás Eichmann, durante o seu julgamento em Jerusalém, considerou-se um cidadão exemplar, idealista, que sempre tinha cumprido o seu dever e a lei do Terceiro Reich, e que, como tal, teria enviado para a morte o seu próprio pai, se tal lhe ordenassem. Como bom e leal cidadão ofereceu-se, inclusivamente, para colaborar na “solução do problema judaico”.
Segundo Hannah Arendt, não era um escroque, não era um monstro. Era simplesmente um leal e metódico cumpridor das ordens do Führer e, nessa condição, foi promovido, em 1941, a um cargo equivalente a tenente-coronel, depois de lhe ter sido atribuído um papel importante na “Solução final”, como organizador, primeiro, de um centro de emigração judaica em Praga e, das inúmeras deportações depois.
Diz Hannah Arendt (in Eichmann em Jerusalém, uma reportagem sobre a banalidade do mal):
“Grande parte do horrível e laborioso perfeccionismo com que foi executada a Solução Final – muitas vezes qualificado como tipicamente alemão, ou como característico do burocrata perfeito – deve-se à estranha noção, assaz comum na Alemanha, de que cumprir a lei não significa apenas obedecer à lei, mas também agir como se cada um fosse o legislador de leis a que obedece. Daí a convicção de que não basta cumprir o dever, é preciso ir mais além.”
Contrariamente ao que Hannah Arendt afirmou sobre Eichmann, que, segundo ela, estava destituído da capacidade de pensar, ele afirmou ter vivido toda a sua vida de acordo com os preceitos morais de Kant e com a sua definição de dever. Até tinha lido a Crítica da Razão Prática daquele filósofo. O imperativo categórico do Terceiro Reich, adaptado de Kant, seria: “Age de tal maneira, que se o Führer tivesse conhecimento dos teus atos, os aprovasse”.
Como poderia este homem ser incapaz de pensar?
Segundo afirmou, no final do seu julgamento, “a sua culpa consistia em ter obedecido, e a obediência é uma virtude.”
A expressão de Hannah Arendt “a banalidade do mal” que serviu de subtítulo ao seu livro, aparece apenas no final do mesmo, que ela considera um “longo estudo sobre a maldade humana – a lição de uma realidade terrível, que se situa além daquilo que as palavras podem exprimir e o pensamento pode conceber: a banalidade do mal.”
Não lhe acrescenta qualquer análise filosófica que a justifique e apenas, depois da polémica que gerou em todo o mundo, acrescentou um “Pós- Escrito” nas edições seguintes, defendendo-se com o facto de esta obra ser apenas “o relato jornalístico de um julgamento” e não um tratado teórico sobre a natureza do mal.
Fica-se com a ideia de que a “banalidade do mal” cumpria mais a função de propaganda do livro do que qualquer outro objetivo.
Para Hannah o mal é banal na medida em que o identifica com as características vulgares de Eichmann, em quem não existia “qualquer profundidade diabólica ou demoníaca”. Esclarece a autora que “Eichmann não era estúpido. O que fez dele um dos maiores criminosos da sua época foi a total ausência de pensamento”. Mas tal afirmação apenas pertence à autora e não foi sequer abordada em tribunal, parecendo até contraditória com o que se foi conhecendo dele ao longo do julgamento.
Para quê falar em banalidade do mal, sem qualquer suporte teórico ou desenvolvimento conceptual, contradizendo as afirmações anteriores na sua grande obra de referência “As Origens do Totalitarismo”, onde afirma: “O aparecimento de um mal radical antes ignorado põe fim à noção de gradual desenvolvimento e transformação de valores”
A tradição filosófica ocidental refere o “mal radical”, assim nomeado por Kant, sem, contudo, conseguir explica-lo. Confere-lhe uma existência que só nos campos de concentração viria a ter um lugar insofismável, irresistível e definitivo, concebido e executado por regimes totalitários.
A história tem demonstrado que os movimentos totalitários não se extinguiram. Apenas estão adormecidos, isolados, ou silenciados. O mal, esse, deixou raízes.

 mts
 Auschwitz
 

1 comentário:

catarina disse...

Os argumentos de Hannah Arendt sobre Eichmann fazem dele uma amiba, com a diferença que as amibas não são assassinas nem co-responsáveis por genocídios.
Dqqui se concluí que um pensamento turvo e toldado provoca perigo de morte!