“Uma obra-prima da ficção americana” escreveu a New York Times Book Review.
“Liberdade é o romance do ano e do século. É um clássico moderno”, disse o Guardian.
E eu concordo com entusiasmo. Jonathan Franzen comete a proeza de escrever um romance, que engloba vários romances em torno da figura principal do bom e sensível Walter, de sua mulher Patty e do melhor amigo dos dois, Richard. Depois, temos os filhos e os avós paternos e maternos. Histórias que se interssecionam, que seguem ritmos diferentes, se confrontam e se completam.
O romance é escrito em tempos diferentes, porque o tempo não é linear. Somos forçados a voltar atrás para, depois, seguir em frente.
Quando comecei a leitura, parecia-me estar a reler Hemingway. Mas, tão só no estilo de linguagem simples, próxima do jornalismo, sem recursos estilísticos elaborados.
Onde Jonathan Franzen se singulariza é na magistral análise das relações humanas, do quotidiano familiar de um casal de intelectuais liberais da classe média americana, e na forma inteligente como decompõe as aparentes evidências, escavando as camadas da personalidade das principais personagens do romance até obter a visualização do eu verdadeiro, ainda que, para o conseguir encontrar, levante estrato, após estrato, deixando, a pele e a carne ensanguentada pelo caminho, até chegar ao limite do sofrimento e da aceitação.
A páginas tantas aparece uma autobiógrafa a fazer o relato dos acontecimentos, em vez do narrador. Trata-se de Patty que, como forma de terapia para a sua depressão, sugerida pelo seu terapeuta, escreve o que vê, o que os acontecimentos representam para ela e o que sente.
O seu manuscrito “Foram Cometidos Erros” terá uma importância fulcral na vida de todos, mas principalmente na de Walter, “porque o documento fora obviamente escrito para ele, como uma espécie de desculpa desanimada, que não podia ser-lhe entregue. Walter era a estrela do drama de Patty; ele (Richard), apenas um ator secundário.”
Tudo se passa à volta de Walter, a figura principal. Ele é o esteio moral que suporta, protege e apoia o amigo Richard, músico, sexualmente libertino, e a mulher, Patty, manipuladora, competitiva, que gostava de ser uma estrela em quase todas as situações, que ele fatalmente idealizou e, como tal, amou a imagem que dela construiu.
“No seu íntimo, Patty sabia que a impressão que Walter tinha dela estava errada. E o erro que decidiu cometer, o erro verdadeiramente grande de uma vida, foi ir atrás dessa versão, apesar de saber que não era a correta. Ele parecia tão certo da sua bondade, que acabou por cansá-la.”
A bondade de Walter, o seu idealismo impenitentemente ativo, a sensibilidade tão apurada, a capacidade de entrega e de despojamento não foram tão sexualmente atrativos para Patty como a irresponsabilidade de Richard, que se servia das mulheres em série e que para ela representou o sabor agridoce da traição, a “droga má”.
A liberdade aparece, ao longo do romance citada poucas vezes, (“As tentações e os fardos da Liberdade”),mas o suficiente para perceber que não basta tê-la, é preciso saber usá-la. Patty lamentava-se por ser livre. Tinha chegado a uma conclusão, não sabia fazer bom uso da sua liberdade e, depois de ir até ao limite, chorou pelo seu “próprio ser desafortunado e transgressor”.
“Passei toda a minha vida a saltar para fora da minha pele, frustrada comigo mesmo”, diz Patty a Richard. Joey e Jessica, os filhos, ambos com as suas vidas e convicções diferentes e, por fim, Lalitha, a assistente de Walter, jovem e brilhante, cada um com a sua própria história que se entrecruza com todas as outras.
Esta é uma obra notável, um épico contemporâneo do amor e do casamento, mas também da amizade, que nasce nos dias mais ingénuos da Faculdade e se desenrola até às memórias e ao desencanto da meia-idade. Progride perante os nossos olhos, com uma proximidade que nos toca, pelos temas tão atuais que aborda, que nos magoa, nos faz sorrir e chorar, porque todos estão, afinal, tão próximos de nós, que nos sentimos também parte do romance.
“Walter abraçou-a e esfregou-a ligeiramente, amaldiçoando-a constantemente, amaldiçoando a posição em que ela o deixara, Durante muito tempo ela não aqueceu, continuava a adormecer e mal acordava, mas por fim algo pareceu estalar dentro dela e começou a tremer e agarrou-se a ele. Walter continuava a esfregá-la e a abraçá-la, e então, de repente, os olhos de Patty escancararam-se e ela estava a olhar para ele.
Os seus olhos não pestanejavam. Ainda havia neles algo de quase morto, algo muito distante. Parecia estar a olhar até ao fundo dele e para mais além, para o exterior, para o espaço frio do futuro no qual dentro em breve ambos estariam mortos, e no entanto estava a olhá-lo diretamente nos olhos, e ele conseguia senti-la a aquecer a cada minuto que passava. E então ele deixou de a olhar nos olhos e começou a olhar para dentro deles, a devolver-lhes o olhar antes que fosse demasiado tarde, antes que aquela ligação entre a vida e aquilo que se sucedia à vida ficasse perdida, e ela visse toda a perversidade que existia dentro dele, todos os ódios de duas mil noites solitárias, enquanto os dois ainda estavam em contacto com o vazio no qual a soma de todas as coisas que eles tinham dito ou feito, todas as dores que se tinham infligido, todas as alegrias que tinham partilhado, poderia pesar menos do que a mais leve das penas ao vento.
- Sou eu – disse ela. – Só eu.
- Eu sei – disse Walter, e beijou-a.”
Jonathan Franzen. Liberdade. D. Quixote. 2011. (684 páginas).