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segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Parabéns a Miguel Torga

Miguel Torga, nome literário do médico Adolfo Rocha, foi um poeta, ensaista, dramaturgo, romancista e contista, que nasceu a 12 de Agosto de 1907 em S. Martinho de Anta/Vila Real.

Foi candidato ao Prémio Nobel da Literatura em 1960 (proposto pela Universidade de Montpellier) e em 1978.

Livre e insubmisso, democrata dos quatro costados, Miguel Torga foi detido pela PIDE (polícia política de Salazar) e aprisionado no Limoeiro e no Aljube.


É em memória deste grande escritor, deste homem corajoso, que nunca abdicou da sua voz livre, embora amordaçada pela ditadura,  que aqui ficam alguns dos seus inesquecíveis  poemas.

ESPERANÇA

Miramar, 19 de Agosto de 1967.

Quero que sejas 
A última palavra
Da minha boca.
A mortalha de sol
Que me cubra e resuma.
Mas como à despedida só à bruma
No entendimento,
E o próprio alento
Atraiçoa a vontade,
Grito agora o teu nome aos quatro ventos.
Juro-te, enquanto posso, lealdade
Por toda a vida e em todos os momentos.


In Diário X



CÂNTICO FRATERNO



Chamo por ti,
Chamo por ti, com versos fraternais.
Nunca te vi,
Mas nascemos os dois dos mesmos pais.
Chamo em nome da vida, que me ordena
Que te diga a verdade;
É o meu lenço que acena,
Mas o cais é de toda a humanidade.
Deixa as sombras e vem!
És homem como eu sou, hás-de gostar
De pisar com desdém
A herança que não podes renovar.
O passado é o passado — já morreu.
Grande é o futuro por nascer.
Nenhum fruto maduro prometeu
O que a semente pode prometer.
Do que foi embebedas a lembrança.
Do que há-de ser, estremeces!
Vindo, voltas a ser criança;
Mas aí, apodreces.
Chamo por ti, de manso,
Numa ordeira canção;
É uma ponte se sonho que te lanço…
Passa por ela, irmão!


In Nihil Sibi


DEPOIMENTO
Coimbra, 15 de Fevereiro de 1981.

De seguro,
Posso apenas dizer que havia um muro
E que foi contra ele que arremeti
A vida inteira.
Não. Nunca o contornei.
Nunca tentei
Ultrapassá-lo de qualquer maneira.
A honra era lutar
Sem esperança de vencer.
E lutei ferozmente noite e dia.
Apesar de saber
Que quanto mais lutava mais perdia
E mais funda sentia
A dor de me perder.

In Diário XIII


LIVRO DE HORAS
Aqui, diante de mim,
Eu, pecador, me confesso
De ser assim como sou.
Me confesso o bom e o mau
Que vão ao leme da nau
Nesta deriva em que vou.
Me confesso
Possesso
Das virtudes teologais,
Que são três,
E dos pecados mortais,
Que são sete,
Quando a terra não repete
Que são mais.
Me confesso
O dono das minhas horas.
O das facadas cegas e raivosas
E o das ternuras lúcidas e mansas.
E de ser de qualquer modo
Andanças
Do mesmo todo.
Me confesso de ser charco
E luar de charco à mistura,
De ser a corda do arco
Que atira setas acima
E abaixo da minha altura.
Me confesso de ser tudo
Que possa nascer em mim.
De ter raízes no chão
Desta minha condição.

Me confesso de Abel e de Caim.
Me confesso de ser Homem.
De ser um anjo caído
Do tal céu que Deus governa;
De ser um monstro saído
Do buraco mais fundo da caverna.
Me confesso de ser eu.
Eu, tal e qual como vim
Para dizer que sou eu
Aqui, diante de mim!

In O Outro Livro de Job


ORAÇÃO

Peço-te lucidez, Senhor.
Rogo-te humildemente,
Em nome da terrena condição,
Que me não cegues neste labirinto
De paixões.
Que nele, aos tropeções,
Eu nunca chegue até onde, perdido,
O homem já não pode
Saber até que ponto é consentido
O jugo que sacode.

Coimbra, 14 de Julho de 1974

in Diário XII


PÁTRIA

Foste um mundo no mundo
E és agora
O resto que de ti
Já não posso perder:
A terra, o mar e o céu 
Que todo eu
Sei conhecer.
Foste um sonho redondo,
E és agora
Um palmo de amargura
Retornada.
Amargura que 
em mim
Também nunca tem fim,
Por ter sido comigo baptizada.
Foste um destino aberto, E és agora
Um destino fechado.
Destino igual ao meu, amortalhado
Nesta luz de incerteza
E de certeza
Que vem do sol presente e do passado.
Coimbra, 28 de Abril de 1977
In Diário XII

PERFIL
Coimbra, 2 de Março de 1979

Não. Não tenho limites.
Quero de tudo.
Tudo.
O ramo que sacudo
Fica varejado.
Já nascido em pecado,
Todos os meus pecados são mortais.
Todos são naturais
À minha condição,
Que quando, por excepção,
Os não pratico
É que me mortifico.
Alma perdida
Antes de se perder,
Sou uma fome incontida
De viver.
E o que redime a vida
É ela não caber
Em nenhuma medida

In Diário XIII





Miguel Torga

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