Á medida que avançava na leitura de “Os Buddenbrook”, não
deixava de pensar que Thomas Mann começara a escrevê-lo com 21 anos. E
maravilhei-me. Como é possível que um jovem na casa dos vinte possua um tamanho
conhecimento da alma, dos desejos e da consciência humanas? Como foi possível fazer
descrições magistrais, verdadeiramente cénicas, coloridas e pitorescas de ambientes e situações? Pouco importa saber
que Thomas Mann se tenha inspirado na sua própria família, espalhando a
discórdia entre aqueles familiares que
se viam retratados fielmente, com mais ou menos ironia e mordacidade em alguns casos. O simples
facto de ter conseguido escrever a história da ascensão e queda de uma família
(quatro gerações) da burguesia endinheirada do norte da Alemanha, com tamanha
mestria valer-lhe-ia, só por si, o Nobel
de Literatura em 1929, tendo o júri feito particular menção a “Os Buddenbrook” .
O génio que demonstra na profundidade da análise psicológica das personagens e do seu
caminho na vida, bem como o apuramento estilístico e a capacidade de observação
excecional patente nas minuciosas descrições que povoam esta obra fazem–me sentir
que nada melhor poderia ser escrito. Cada cena, cada intervenção das personagens,
cada descrição da sua forma de trajar, de se apresentar e de intervir é tão
naturalmente romântica, estética e simultaneamente realista que facilmente as “vemos”, de tal forma cénica é a escrita de
Thomas Mann.
À medida que avançava na leitura do romance, chegava a parar para melhor
contemplar, como se no teatro ou no cinema me encontrasse. Esteticamente é aí
que reside a força incomparável desta obra.
O desenho das personagens principais, de que destaco os
três irmãos, sendo o mais importante,
Thomas Buddenbrook, e, depois, Tony e Christian e Hanno (Johann), filho de Thomas, é
não apenas escrupuloso, como inexcedível do ponto de vista psicológico e
estético. Sem esquecer a singular ironia com que o escritor salpica a sua obra
e o humor que nos leva a sorrir ou a rir, com a irmã Tony, casada e divorciada mais
do que uma vez, infantil mas perspicaz, dissimulada e altaneira, com pretensões a aristocrata.
É ela que tem uma enorme força interior, que ri e chora
em abundância, a quem nada ficou por dizer, porque nada calou na sua vida, ostentando
genuinamente os seus sentimentos, o seu riso e o seu pranto, mas recompondo-se
logo a seguir, atirando a cabeça para trás, consciente da sua posição na
sociedade e do seu contributo para aumentar o prestígio da família.
“Não se calara nem perante as lisonjas, nem perante as
ofensas que a vida lhe havia reservado. Tudo havia conseguido exteriorizar,
todos os momentos de felicidade e de tristeza,
numa torrente de palavras banais e puerilmente importantes, palavras que
sentiam por completo a sua necessidade de comunicação. Era verdade que não era
muito forte de estômago, mas tinha o coração leve e livre – nem ela mesma sabia
até que ponto. Não a consumia nenhum sentimento não verbalizado, não lhe pesava
nenhuma experiência silenciada. E por isso não se sentia culpada por
absolutamente nada do seu passado. Sabia que lhe havia cabido em sorte um
destino agitado e difícil, porém nada disso lhe deixara sinais de peso ou
cansaço”.
Na desgraça ou na mais profunda felicidade, Tony era senhora de uma jovialidade desenfreada,
uma autêntica força da natureza.
Christian, irresponsável, boémio, contador de histórias, sem
a mínima predisposição para trabalhar, desbaratava dinheiro inconsequentemente,
sempre com “uma moinha do lado esquerdo”.
“O que se agravava
com o passar do tempo, era a estranha falta de sentido de oportunidade que, com
os anos, começara a fazer parte da sua maneira de ser e de estar”.
A figura central desta obra , Thomas Buddenbrook, a quem
coubera a espinhosa missão de tomar conta dos negócios da família, torna-se inesquecível. Sempre impecavelmente vestido,
não descurando nenhum pormenor da sua indumentária, do penteado, do bigode
esticado com o ferro, era um incansável trabalhador, tendo levado a firma á
glória e alcançado o título de senador.
“Alcançara na vida o que estivera, no fundo ao seu alcance e
tinha perfeita consciência de que há muito tempo que deixara para trás o apogeu
dos seus dias…”
A influência de Shopenhauer faz-se sentir, tudo era ilusão,
vaidade, inutilidade, puro vazio, a morte era a serenidade. O declínio dos
negócios da família era imparável. Contudo, Thomas, sentindo que o desânimo
tomara posse da sua vida, apurava a sua vaidade, e quando saía de casa era
outro, desempenhava impecavelmente o seu papel a discursar ou em sociedade, junto
dos outros atores da mesma peça. Ao pequeno Jano, seu filho, em quem depositara,
em vão, as maiores esperanças, nada escapava e era bem visível esse paradoxo ,
por isso se deixava envolver pelo poder inigualável da música, pressentindo que
nada tinha em comum com o mundo do seu pai.
Thomas cumpria na perfeição o seu papel e, com todos os pormenores do seu
disfarce, deixava o camarim para entrar no palco. Tinha perfeita consciência de
que esta comparação se lhe aplicava com perfeição. Ansiava, porém, pela morte.
“O que era a morte? A resposta não lhe foi dada em palavras
pobres ou ostensivas. Ele sentiu a resposta, ele possuiu-a no fundo do seu ser.
A morte era uma felicidade, uma ventura tão profunda que só podia ser
verdadeiramente avaliada em momentos abençoados como aquele. A morte era o
regresso de uma odisseia de indizível
sofrimento, a correção de um erro crasso, a libertação dos mais terríveis
grilhões e barreiras. A morte era a reparação de um mais que lamentável
infortúnio”.
O seu casamento continuava a ser um enigma. Gerda, sua
mulher, era serena e distante. Tocava violino e despertava no filho o gosto
acentuado pela música. Thomas sentia que perdia o filho e se afundava. Um dia,
Jano, vendo o Livro da Família (em que eram anotados todos os acontecimentos
importantes) aberto, traçou com uma pena, uma linha dupla, de cima a baixo numa
folha branca. Este gesto era uma profanação e o pai interpelou-o, zangado. Jano
respondeu-lhe ,“Eu pensava que não vinha mais nada”. De uma forma aparentemente
inocente surgia o prenúncio de que tudo terminava ali. Não haveria continuidade
geracional. Anunciava-se a decadência da família. Thomas pressentia –a.
“Aprendi que muitas
vezes os sinais e símbolos exteriores, visíveis e palpáveis, da sorte e do sucesso
só se dão a conhecer quando, na realidade, já tudo se encontra de novo no
declínio”
Thomas, o Senador, que todos se habituavam a ver,
exteriormente, como uma figura irrepreensível
e vaidosa, chorava , em sua casa, “o
corpo sacudido por uma espécie de êxtase”, com toda a sua estrutura humana
abalada por “arrebatadoras iluminações de alma, que lhe permitiram
“apreender a eternidade imutável. Nada principiava e nada
findava, Só existia um presente infinito e a força que nele habitava e que
amava a vida com uma intensidade tão doce e pungente, tão imperiosa e
nostálgica – essa força da qual a sua pessoa não passava de uma expressão
malograda -, nunca deixaria de encontrar o caminho que conduzia a tal presente.”
A morte de Thomas assume contornos cénicos tão vívidos e
trágicos, embora quase burlescos, que me lembrei da “Morte em Veneza”, que Thomas
Mann escreveria alguns anos mais tarde.
Quanto ao pequeno e débil Jano, detestava a escola comercial
e tinha arrepios “de repulsa e de
angústia”, só de pensar que era esperado
dele, um dia, substituir o pai,
participar e falar em sessões públicas, com a mesma facilidade de palavra dele.
Corria, então a refugiar-se na música. Tocava apaixonadamente piano e
improvisava e, quando Thomas Mann descreve aquela que seria a sua última vez,
quase sentimos os acordes da música e pressentimos o seu fim.
“Os sinais que se escutavam pareciam gritos de terror…”
“Havia algo de violento e embotado, de ascético e religioso,
ao mesmo tempo, algo semelhante a fé e a abnegação no culto fanático daquele
nada, daquele fragmento melódico, […]”
“Os Buddenbruk” é uma obra genial e paradigmática, que
nos emociona, com uma personagem
principal, Thomas Buddenbrook, que ocupa
o centro do romance, e se torna inesquecível.
Cheguei ao fim, com vontade de continuar. Terminei a leitura há dias, e fiquei
cativa desta família, com a certeza de que este é um dos romances da minha vida.
No seu ensaio « Sous bénéfice d’inventaire », Marguerite
Yourcenar escreveu sobre o «Humanisme et hermétisme
chez Thomas Mann “, em que refere a “Musique dissolvante, déjà dangereusement maléfique dans
le monde tragiquement wagnérien des Buddenbrooks” e classifica também a obra de Mann como
clássica moderna .
Cito
em francês:
“L’œuvre
de Thomas Mann se situe dans la catégorie très rare du classique moderne,
c’est-à-dire de l’œuvre encore récente et point du tout indiscutée, mais au
contraire sans cesse reprise, rejugée, examinée sur toutes ses faces et à tous
ses niveaux, digne de servir à la fois de pierre de touche et d’aliment. De
telles œuvres nous émeuvent, à la cinquième lecture, pour des raisons
différentes de celles qui nous les firent aimer à la première, ou même opposées
à celles-ci. L’atmosphère de dépaysement et presque d’exotisme que respire un
lecteur français qui aborde pour la première fois Les Buddenbrooks, dissipée du
fait de l’habitude, ou d’une plus intime connaissance de l’Allemagne, laisse à
nu le document humain, le drame de l’homme aux prises avec les forces
familiales ou sociales qui l’ont construit et qui peu à peu vont le détruire.”
"Os Buddenbrook" teve
várias adaptações ao cinema: logo em 1923 (filme mudo), em 1959 e em 2008. Foi
também realizada uma mini-série para televisão em 1979.
Mann,
Thomas, Os
Buddenbrook, Tradução do alemão por Gilda Lopes Encarnação. Dom
Quixote, 1.ª edição, Abril de 2011
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