Publicação em destaque

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Os Buddenbrook

Á medida que avançava na leitura de “Os Buddenbrook”, não deixava de pensar que Thomas Mann começara a escrevê-lo com 21 anos. E maravilhei-me. Como é possível que um jovem na casa dos vinte possua um tamanho conhecimento da alma, dos desejos e da consciência humanas? Como foi possível fazer descrições magistrais, verdadeiramente cénicas, coloridas e pitorescas  de ambientes e situações? Pouco importa saber que Thomas Mann se tenha inspirado na sua própria família, espalhando a discórdia entre aqueles familiares  que se viam retratados fielmente, com mais ou menos  ironia e mordacidade em alguns casos. O simples facto de ter conseguido escrever a história da ascensão e queda de uma família (quatro gerações) da burguesia endinheirada do norte da Alemanha, com tamanha mestria valer-lhe-ia, só por si,  o Nobel de Literatura em 1929, tendo o júri feito particular menção a “Os Buddenbrook” .

O génio que demonstra na profundidade da  análise psicológica das personagens e do seu caminho na vida, bem como o apuramento estilístico e a capacidade de observação excecional patente nas minuciosas descrições que povoam esta obra fazem–me sentir que nada melhor poderia ser escrito. Cada cena, cada intervenção das personagens, cada descrição da sua forma de trajar, de se apresentar e de intervir é tão naturalmente romântica, estética e simultaneamente realista que facilmente  as “vemos”, de tal forma cénica é a escrita de Thomas Mann.


À medida que avançava na leitura do romance, chegava a parar para melhor contemplar, como se no teatro ou no cinema me encontrasse. Esteticamente é aí que reside a força incomparável desta obra.


O desenho das personagens principais, de que destaco os três irmãos, sendo o  mais importante, Thomas Buddenbrook, e, depois,  Tony e  Christian e Hanno (Johann), filho de Thomas, é não apenas escrupuloso, como inexcedível do ponto de vista psicológico e estético. Sem esquecer a singular ironia com que o escritor salpica a sua obra e o humor que nos leva a sorrir ou a rir, com a irmã Tony, casada e divorciada mais do que uma vez, infantil mas perspicaz, dissimulada  e altaneira, com pretensões a aristocrata.
É ela que tem uma enorme força interior, que ri e chora em abundância, a quem nada ficou por dizer, porque nada calou na sua vida, ostentando genuinamente os seus sentimentos, o seu riso e o seu pranto, mas recompondo-se logo a seguir, atirando a cabeça para trás, consciente da sua posição na sociedade e do seu contributo para aumentar o prestígio da família.  

“Não se calara nem perante as lisonjas, nem perante as ofensas que a vida lhe havia reservado. Tudo havia conseguido exteriorizar, todos os momentos de felicidade  e de tristeza, numa torrente de palavras banais e puerilmente importantes, palavras que sentiam por completo a sua necessidade de comunicação. Era verdade que não era muito forte de estômago, mas tinha o coração leve e livre – nem ela mesma sabia até que ponto. Não a consumia nenhum sentimento não verbalizado, não lhe pesava nenhuma experiência silenciada. E por isso não se sentia culpada por absolutamente nada do seu passado. Sabia que lhe havia cabido em sorte um destino agitado e difícil, porém nada disso lhe deixara sinais de peso ou cansaço”.

Na desgraça ou na mais profunda felicidade, Tony  era senhora de uma jovialidade desenfreada, uma autêntica força da natureza.

Christian, irresponsável, boémio, contador de histórias, sem a mínima predisposição para trabalhar, desbaratava dinheiro inconsequentemente, sempre com “uma moinha do lado esquerdo”.

 “O que se agravava com o passar do tempo, era a estranha falta de sentido de oportunidade que, com os anos, começara a fazer parte da sua maneira de ser  e de estar”.

A figura central desta obra , Thomas Buddenbrook, a quem coubera a espinhosa missão de tomar conta dos negócios da família, torna-se  inesquecível. Sempre impecavelmente vestido, não descurando nenhum pormenor da sua indumentária, do penteado, do bigode esticado com o ferro, era um incansável trabalhador, tendo levado a firma á glória e alcançado o título de senador.

“Alcançara na vida o que estivera, no fundo ao seu alcance e tinha perfeita consciência de que há muito tempo que deixara para trás o apogeu dos seus dias…”
A influência de Shopenhauer faz-se sentir, tudo era ilusão, vaidade, inutilidade, puro vazio, a morte era a serenidade. O declínio dos negócios da família era imparável. Contudo, Thomas, sentindo que o desânimo tomara posse da sua vida, apurava a sua vaidade, e quando saía de casa era outro, desempenhava impecavelmente o seu papel a discursar ou em sociedade, junto dos outros atores da mesma peça. Ao  pequeno Jano, seu filho, em quem depositara, em vão, as maiores esperanças, nada escapava e era bem visível esse paradoxo , por isso se deixava envolver pelo poder inigualável da música, pressentindo que nada tinha em comum com o mundo do seu pai.

Thomas cumpria na perfeição o seu papel e, com todos os pormenores do seu disfarce, deixava o camarim para entrar no palco. Tinha perfeita consciência de que esta comparação se lhe aplicava com perfeição. Ansiava, porém, pela morte.

“O que era a morte? A resposta não lhe foi dada em palavras pobres ou ostensivas. Ele sentiu a resposta, ele possuiu-a no fundo do seu ser. A morte era uma felicidade, uma ventura tão profunda que só podia ser verdadeiramente avaliada em momentos abençoados como aquele. A morte era o regresso de uma odisseia de  indizível sofrimento, a correção de um erro crasso, a libertação dos mais terríveis grilhões e barreiras. A morte era a reparação de um mais que lamentável infortúnio”.
O seu casamento continuava a ser um enigma. Gerda, sua mulher, era serena e distante. Tocava violino e despertava no filho o gosto acentuado pela música. Thomas sentia que perdia o filho e se afundava. Um dia, Jano, vendo o Livro da Família (em que eram anotados todos os acontecimentos importantes) aberto, traçou com uma pena, uma linha dupla, de cima a baixo numa folha branca. Este gesto era uma profanação e o pai interpelou-o, zangado. Jano respondeu-lhe ,“Eu pensava que não vinha mais nada”. De uma forma aparentemente inocente surgia o prenúncio de que tudo terminava ali. Não haveria continuidade geracional. Anunciava-se a decadência da família. Thomas pressentia –a.
 “Aprendi que muitas vezes os sinais e símbolos exteriores, visíveis e palpáveis, da sorte e do sucesso só se dão a conhecer quando, na realidade, já tudo se encontra de novo no declínio”
Thomas, o Senador, que todos se habituavam a ver, exteriormente,  como uma figura irrepreensível e vaidosa,  chorava , em sua casa, “o corpo sacudido por uma espécie de êxtase”, com toda a sua estrutura humana abalada por “arrebatadoras iluminações de alma, que lhe permitiram
“apreender a eternidade imutável. Nada principiava e nada findava, Só existia um presente infinito e a força que nele habitava e que amava a vida com uma intensidade tão doce e pungente, tão imperiosa e nostálgica – essa força da qual a sua pessoa não passava de uma expressão malograda -, nunca deixaria de encontrar o caminho que conduzia a tal presente.”
A morte de Thomas assume contornos cénicos tão vívidos e trágicos, embora quase burlescos, que me lembrei da “Morte em Veneza”, que Thomas Mann escreveria alguns anos mais tarde.
Quanto ao pequeno e débil Jano, detestava a escola comercial e tinha arrepios  “de repulsa e de angústia”,  só de pensar que era esperado dele, um dia,  substituir o pai, participar e falar em sessões públicas, com a mesma facilidade de palavra dele. Corria, então a refugiar-se na música. Tocava apaixonadamente piano e improvisava e, quando Thomas Mann descreve aquela que seria a sua última vez, quase sentimos os acordes da música e pressentimos o seu fim.
“Os sinais que se escutavam pareciam gritos de terror…”
“Havia algo de violento e embotado, de ascético e religioso, ao mesmo tempo, algo semelhante a fé e a abnegação no culto fanático daquele nada, daquele fragmento melódico, […]”
“Os Buddenbruk” é uma obra genial e paradigmática, que nos emociona,  com uma personagem principal, Thomas Buddenbrook,  que ocupa o centro do romance,  e se torna inesquecível. Cheguei ao fim, com vontade de continuar. Terminei a leitura há dias, e fiquei cativa desta família, com a certeza de  que este é um dos romances da minha vida.


No seu ensaio  « Sous bénéfice d’inventaire », Marguerite Yourcenar escreveu sobre o «Humanisme et hermétisme chez Thomas Mann , em que refere a  “Musique dissolvante, déjà dangereusement maléfique dans le monde tragiquement wagnérien des Buddenbrooks” e classifica também a obra de Mann como clássica moderna .

Cito em francês: 

“L’œuvre de Thomas Mann se situe dans la catégorie très rare du classique moderne, c’est-à-dire de l’œuvre encore récente et point du tout indiscutée, mais au contraire sans cesse reprise, rejugée, examinée sur toutes ses faces et à tous ses niveaux, digne de servir à la fois de pierre de touche et d’aliment. De telles œuvres nous émeuvent, à la cinquième lecture, pour des raisons différentes de celles qui nous les firent aimer à la première, ou même opposées à celles-ci. L’atmosphère de dépaysement et presque d’exotisme que respire un lecteur français qui aborde pour la première fois Les Buddenbrooks, dissipée du fait de l’habitude, ou d’une plus intime connaissance de l’Allemagne, laisse à nu le document humain, le drame de l’homme aux prises avec les forces familiales ou sociales qui l’ont construit et qui peu à peu vont le détruire.”

"Os Buddenbrook" teve várias adaptações ao cinema: logo em 1923 (filme mudo), em 1959 e em 2008. Foi também realizada uma mini-série para televisão em 1979.



Mann, Thomas, Os Buddenbrook, Tradução do alemão por Gilda Lopes Encarnação. Dom Quixote, 1.ª edição, Abril de 2011




Sem comentários: