SOMOS TODOS BASTARDOS DO SOL
A morte de Urbano Tavares Rodrigues colheu-me de surpresa na
manhã de hoje.
O Urbano combinava uma extrema sensibilidade e generosidade com uma coragem física invulgar e uma espécie
única de dignidade que, espero, não se tenha extinguido com ele.
Neste momento,
não me apetece escrever a sua biografia, mas apenas senti-lo na memória que dele guardo.
Com mais tempo,
fui à estante e dela retirei um livro que é um exemplo de escrita despojada e, não
obstante, emocionada, Bastardos do Sol, o seu primeiro romance.
Escolhi este excerto de que gosto particularmente.
"Toma, mandei-a vir de Lisboa. Como agora não há rosas... - dizia,
com uma suavidade experiente e ambígua de menino de coro, estendendo-lhe a
caixa de plástico transparente em cujo fundo dormia uma orquídea roxa e amarela
Tinha uma palheta de ouro no fundo dos olhos pretos. E era
esse misto de candura e cinismo, só para
ela, o que mais a prendia àquele rapaz confessamente egoísta e leviano. Ela o
adivinhava: a própria auréola que o envolvia e o seguia, resultado aparente da
sua simpatia fácil pelos outros, do amor, vivo mas passageiro, que a tudo e a
todos, a todas as coisas e bichos levemente distribuía, mesmo isso talvez não
fosse – para quê sabê-lo ao certo?! – mais que o reflexo de alguma tara
escondida que lhe maculasse, estilizando-a, a juventude violenta e natural. Mas
tudo Irisalva nele amava: o bem e o mal, , juventude generosa ou juventude egoísta,
e até a tara ou a mácula, se tal mácula havia. […].
Tivera medo dele ao princípio, dele e do desafio dos
outros e a si própria, e até medo físico “daquilo”. Mas deixara-se ir. Não:
escolhera. Um chaparral adormentado, as cigarras, o enxame de oiro dos
malmequeres, a primavera das espigas, a tarde despovoada, as coisas em êxtase,
os chocalhos de uma vacada ao longe, como sinos, e depois a espessura clara e
calma do silêncio. Antes ali!
Já adivinhara para
que era o passeio. E fora. Só depois de haver beijado e desvendado e de a ter
perturbado e revolvido como ninguém até então, com gestos novos e macios, é que
ele - só então – se ilhara dela a fumar,
resserenado, apesar de tudo, apesar da frustração, e , e confessara que não esperava (mas porquê … e seria
verdade ao menos?) que ela estivesse
como estava…E mais isso e mais aquilo, com uma lógica aflitiva e uma confiança,
uma conformação irrefutáveis: que sim, que gostava dela, mas qua a avisava já,
«honestamente», de que não queria casar-se, não podia conceber o amor como
prisão (até esse lugar-comum), e que naquele momento a «adorava» sinceramente,
isto é, que julgava adorá-la, mas que temia o futuro e a sua irremediável leviandade.
Que já se conhecia o bastante infelizmente…
E fora ela então a
pedir, a exigir quase que consumasse aquilo que não devia ter começado. Os
primeiros beijos salgados e a felicidade imensa da sua dádiva total: e depois
aquela gratidão dele, desajeitada, inesperada, viril, cobrindo-a, crescendo, dir-se-ia durante meses... Mas nunca se resolvera - e ela sempre à espera - a escvolhê-la de vez, pela igreja ou pelo registo, ou sem registo nenhum, fosse como fosse,
mas à luz do dia, em frente de todos – antes que o verme do fastio (desse
fastio anunciado que ela lhe espreitava, doentiamente nos modos e nas frases
mais inocente) se insinuasse nos abraços ainda repetidos e vorazes que os
soldavam e se desfaziam em espuma de ternura risonha.”
In Urbano Tavares Rodrigues, Bastardos do Sol, 3.ª edição
revista com um estudo de Luís Francisco Rebello, seguido do prefácio da edição
francesa por Claude Michel Cluny,. LLivraria Bertrand. SARL, Lisboa, 1966.
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