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quinta-feira, 19 de junho de 2014

Diário da minha mãe


19 de Junho de 2014.

Mãe, mãe, como perceber o que é o teu feitio e o que é doença? Sei, porque li, que por vezes, é difícil distinguir, mas, hoje, estou sem forças e custa-me mais. Fazes-me as exigências de sempre e isso é o teu velho feitio. Fico nervosa. Tu notas e eu sinto-me culpada. Mas, mãe, tu nunca ficas satisfeita com nada e isso causa-me uma leve irritação. Tu notas e eu, com o sentimento de culpa de antanho, envergonho-me e logo te beijo a mão, como uma menina envergonhada.
Estou cansada mãe.
Contas-me que houve um grande escândalo, falas de muita gente, de um jantar e novamente de muita gente. Isso é doença, eu sei.
Quase sem pausas falas-me da tua irmã, minha tia, Rosa, que vive longe. Queres saber se estará ainda viva. Logo de seguida lembras-te da minha velha ama – vou chamar-lhe assim, porque foi isso que ela foi para mim. A minha querida Rita, tão cúmplice e amiga, tão alegre e bem humorada. O teu discurso torna-se coerente. Não sei como dizer-te que ela já partiu há um ano. Vou pensar nisso…
Em cada dia mudas de “sala” e tens um médico ou médica novos. Não percebo como podem funcionar bem assim. A médica de hoje resolveu falar de ti, na terceira pessoa do singular, comigo, na tua frente. Quando lhe digo, muito baixinho que a minha mãe está baralhada, responde-me, com um ar acusatório, que quando falou com Ela, hoje de manhã (só falou hoje), estava muito articulada. Não rebati, calei-me ostensivamente para ver se ela percebia. Será possível que uma médica não saiba que não deve estar a falar de uma doente, na frente dela, como se ela não estivesse presente e nada percebesse, ou sentisse, ou intuísse?!
Quase não comes. Nem mesmo os figos que adoras e que te levei com fartura. Estás a mover-te melhor. Pedes-me que faça a tua cama como tu gostas, sem uma prega, senão não dormes. Ajudo-te a deitar, tapo-te, com um cobertor – sim, com um cobertor, porque o ar condicionado gela tudo…
Pergunto-te por que queres ficar com os óculos na cama, quando normalmente não os usas. Respondes-me – quero ver bem as caras de toda a gente. Deixo-te ficar assim. Cubro-te a cara de beijos e venho-me embora, com mais uma lista de pedidos teus para cumprir. Nunca param. Quando um é satisfeito, logo outro toma o seu lugar.
Amanhã voltarei. Não sei se te encontrarei no mesmo quarto e se te será atribuído outro médico novo. Como não ficará a tua cabeça, mãe?

Hoje apetece-me muito chorar.


mts


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