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sábado, 21 de junho de 2014

Diário da Minha mãe

20 de junho de 2014

Hoje a minha mãe parecia estar a desvanecer-se. Quase desaparecia debaixo do cobertor, no cadeirão voltado para a porta, para ver passar as pessoas, que ela diz estar a analisar. Tão fraquinha. A falar tão baixo. Quase sussurra. Mas acaba por falar muito. A sua cama tem o número 13. A porta do armário, em frente, tem o número 13.
- Estás a ver o 13? É o teu pai. Para onde quer que eu vá, ele segue-me. É para me proteger. E a ti também, filha.
O número 13 é o dia de anos, não apenas do meu pai, como também da sua bisneta, a Adriana.
Quer dizer muita coisa, cansa-se e pede água. O tema é o meu pai, que me deixou só na vida, com os meus dois filhos, quando, de súbito, morreu, há quarenta anos, logo após o meu divórcio. Agarra-me o braço e aperta-o. Eu não contava com a “presença” do meu pai e desmancho-me em pranto, agarrada à minha mãe. Ela bem sabe como ele me fez falta e como nunca recuperei de dois acontecimentos tão traumáticos, quase em simultâneo. De vez em quando as palavras não chegam. Escapa-me – diz. Encolhe os ombros, triste, e recomeça novo tema.
Ontem, fez-me uma revelação que me deixaria atónita, se eu não estivesse já habituada a esperar tudo.
- Nunca fui comunista, (isso posso eu testemunhar! Muito pelo contrário.), mas agora penso que, se viesse o comunismo, o país melhoraria e levantar-se-ia. Atualmente, viver neste país é uma tortura, acrescenta, e eu apresso-me a corroborar.
Hoje, previamente combinado comigo, a minha filha Catarina aparece. De súbito, o sol irrompeu naquele quarto partilhado com outra senhora. Se a felicidade tivesse rosto, seria o da minha mãe quando a viu. Abriu os braços para a receber, enfeitou-se com o seu melhor sorriso, os olhos, ainda antes tão tristes, resplandeceram.
- Eu tinha dito àquela senhora que tu és linda e a agora estás aqui, diz com orgulho. Quer dizer muita coisa.
Pede à neta que me ajude sempre porque – onde quer que eu esteja, vou olhar por todos vós - acrescenta.
Ali estamos. Três gerações. Três mulheres, que partilham entre si o gene da coragem.
Cansada, a minha mãe diz – agora falem vocês.
A conversa vira-se para a Adriana, o pequeno furacão, que é a minha neta.
Quando vem a hora da partida, a minha mãe revela que foi o melhor bocadinho do seu dia, cansada que está do hospital, das horas que não passam, das melhoras que tardam em chegar.
Eu venho para casa com a minha filha. Em silêncio cúmplice. Ambas vimos e sentimos o mesmo. Não carecemos de palavras.
A minha mãe está a preparar-se para a sua derradeira hora. Graças a Deus, está em paz. Eu não.
Ainda tenho esperança, porque tantas vezes esteve a beira de partir e a sua enorme força interior fê-la recuperar.
Não estou preparada para que o cordão umbilical se rompa para sempre.

Amanhã, estarei de novo aí para te acarinhar, mãe,  e sei que vais estar à minha espera.

mts




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