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quarta-feira, 28 de setembro de 2016

MARIA: Amo como o amor ama

             MARIA: 

Amo como o amor ama.
Não sei razão pra amar-te mais que amar-te.
Que queres que te diga mais que te amo,
Se o que quero dizer-te é que te amo?
Não procures no meu coração...
Quando te falo, dói-me que respondas
Ao que te digo e não ao meu amor.
Quando há amor a gente não conversa:
Ama-se, e fala-se para se sentir.
Posso ouvir-te dizer-me que tu me amas,
Sem que mo digas, se eu sentir que me amas.
Mas tu dizes palavras com sentido,
E esqueces-te de mim; mesmo que fales
Só de mim, não te lembras que eu te amo.
Ah, não perguntes nada, antes me fala
De tal maneira, que, se eu fora surda,
Te ouvisse toda com o coração.
Se te vejo não sei quem sou; eu amo.
Se me faltas, (...)
Mas tu fazes, amor, por me faltares
Mesmo estando comigo, pois perguntas
Quando deves amar-me. Se não amas,
Mostra-te indiferente, ou não me queiras,
Mas tu és como nunca ninguém foi,
Pois procuras o amor pra não amar,
E, se me buscas, é como se eu só fosse
O Alguém pra te falar de quem tu amas.
Diz-me porque é que o amor te faz ser triste?
Canso-te? Posso eu cansar-te se amas?
Ninguém no mundo amou como tu amas.
Sinto que me amas, mas que a nada amas,
E não sei compreender isto que sinto.
Dize-me qualquer palavra mais sentida
Que essas palavras que, como se as perderas,
                                                               buscas
E encontras cinzas.
Quando te vi, amei-te já muito antes.
Tornei a achar-te quando te encontrei.
Nasci pra ti antes de haver o mundo.
Não há coisa feliz ou hora alegre
Que eu tenha tido pela vida fora,
Que não o fosse porque te previa,
Porque dormias nela tu futuro,
E com essas alegrias e esse prazer
Eu viria depois a amar-te. Quando,
Criança, eu, se brincava a ter marido,
Me faltava crescer e o não sentia,
O que me satisfazia eras já tu,
E eu soube-o só depois, quando te vi,
E tive para mim melhor sentido,
E o meu passado foi como uma estrada
Iluminada pela frente, quando
O carro com lanternas vira a curva
Do caminho e já a noite é toda humana.
Tens um segredo? Dize-mo, que eu sei tudo
De ti, quando m'o digas com a alma.
Em palavras estranhas que m'o fales,
Eu compreenderei só porque te amo.
Se o teu segredo é triste, eu saberei
Chorar contigo até que o esqueças todo.
Se o não podes dizer, dize que me amas,
E eu sentirei sem qu'rer o teu segredo.
Quando eu era pequena, sinto que eu
Amava-te já hoje, mas de longe,
Como as coisas se podem ver de longe,
E ser-se feliz só por se pensar
Em chegar onde ainda se não chega.
Amor, diz qualquer coisa que eu te sinta!
                FAUSTO:

Compreendo-te tanto que não sinto.
Oh coração exterior ao meu!
Fatalidade filha do destino
E das leis que há no fundo deste mundo!
Que és tu a mim que eu compreenda ao ponto
De o sentir...?

                MARIA:

Para que queres compreender
Se dizes qu'rer sentir?
s.d.
Fernando Pessoa 
In Fausto - Tragédia Subjectiva. Fernando Pessoa. (Texto estabelecido por Teresa Sobral Cunha. Prefácio de Eduardo Lourenço.) Lisboa: Presença, 1988.
  
 Sir Thomas Francis Dickseee. 1819-1893

sábado, 24 de setembro de 2016

A Casa

A Casa é mais do que paredes.
É ninho. 
É barco e porto de abrigo.
É tempo de todas as estações do ano.
É universo onde há sol e luar,
onde se cruzam todas as aves
e se falam todos os idiomas.
É floresta onde passeiam sonhos
e dança a imaginação.
A Casa é este portal
que nos acolhe e nos assombra,
por vezes paz, por vezes tormenta.

mts

[Não fales alto, que isto aqui é vida -]

Não fales alto, que isto aqui é vida —
Vida e consciência dela,
Porque a noite avança, estou cansado, não durmo,
E, se chego à janela,
Vejo, de sob as pálpebras da besta, os muitos lugares das estrelas…
Cansei o dia com esperanças de dormir de noite,
É noite quase outro dia. Tenho sono. Não durmo.
Sinto-me toda a humanidade através do cansaço —
Um cansaço que quase me fez carne os ossos…
Somos todos aquilo…
Bamboleamos, moscas, com as asas presas,
No mundo, teia de aranha sobre o abismo.

21 - 10 - 1931
Álvaro de Campos



Poema em Linha Reta

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo. 

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo.
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cómico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo. 

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um acto ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos, 
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo? 
Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra? 
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

Álvaro de Campos
André Kertész (1894-1985)

quinta-feira, 22 de setembro de 2016

ESQUECIMENTO


Nestes dias de esperança recôndita
caminho sonâmbula com humor alegre
e, apesar de tudo, com a alma esbraseada.
Esqueci o teu nome
à força de soletrar esquecimento.
Busquei nas cinzas que deixaste
uma brasa ardente a que peguei
o fogo de um novo incêndio.
Aprenderei outro amor
a que darei nome de nuvem.
Digo-te adeus sem azedume
e parto sem mágoa
secos como estão os meus olhos
cansados de lágrimas.

O amor, sabes, morre naturalmente
como planta frágil que não é regada.
Mas, também renasce, por vezes
com um olhar incandescente ou
um sorriso recortado em luar.

Tu foste. Passaste.
Eu sou.
Eu vivo e amo...

 Maria Teresa Sampaio
Richard Burlet







quarta-feira, 21 de setembro de 2016

Brasa

0lho a rosa que nasce dos teus lábios,
as estrelas no fundo líquido do teu olhar
e enlouqueço de alegria
quando me colhes como flor selvagem
e me presenteias com beijos ávidos.
Deixamo-nos envolver até à claridade maior da alma,
nas visões e nos encantos milenares
deste fogo que nos consome na volúpia de existir.
Cada dia, cada momento, à beira de nada e de tudo.
Vamos pela vida a caminho do desconhecido
sem nada esperar, para melhor
colher alegrias e surpresas.

E é isso que tu, melhor do que ninguém, sabes fazer,
entregares-te sem reservas nos meus braços  e amares–me
como se estivéssemos fora do tempo e das sombras.

Ai, amor, amor, abandonemo-nos no silêncio
mesclado de sentidos que tão bem entendemos.
Fiquemos assim abraçados, olhar no olhar, mãos nas mãos,
sem nada esperar. Sabendo que tudo pode sempre acontecer.

Para além de todos os limites, de espaço e de tempo,
voamos, tu e eu, com asas entretecidas de sonhos,
rumo a um horizonte sem fim.


Maria Teresa Sampaio

Christian Schloe (Áustria)

terça-feira, 20 de setembro de 2016

[Dei-lhe um beijo ao pé da boca]

Dei-lhe um beijo ao pé da boca
Por a boca se esquivar.
A ideia talvez foi louca,
O mal foi não acertar.
~
1934-1935
Fernando Pessoa
In Poesia do Eu , Círculo de Leitores, edição de Richard Zenith, 2006
Photo de Henri Cartier Bresson







Fotografia de Henri Cartier Bresson

segunda-feira, 19 de setembro de 2016

[Vivem em nós inúmeros;]

Vivem em nós inúmeros;
Se penso ou sinto, ignoro
Quem é que pensa ou sente.
Sou somente o lugar
Onde se sente ou pensa.

Tenho mais almas que uma.
Há mais eus do que eu mesmo.
Existo todavia
Indiferente a todos.
Faço-os calar: eu falo.
Os impulsos cruzados
Do que sinto ou não sinto
Disputam em quem sou.
Ignoro-os. Nada ditam
A quem me sei: eu escrevo.
~~
13 - 11 - 1935
Ricardo Reis
In Poesia , Assírio & Alvim, ed. Manuela Parreira da Silva, 2000
Nota: Último poema escrito por Fernando Pessoa, atribuído ao seu heterónimo Ricardo Reis, dezassete  dias antes de morrer.
Bartolomeu Cid dos Santos -  Pessoa e Heterónimos  (anos 80)

[Quer pouco: terás tudo.]

Quer pouco: terás tudo.
Quer nada: serás livre.
O mesmo amor que tenham
Por nós, quer-nos, oprime-nos.
~~
27 - 2 - 1933
Ricardo Reis
Imagem: Christopher Martin
Christopher Martin. Monk Bowls

[Cada coisa a seu tempo tem seu tempo.]

Cada coisa a seu tempo tem seu tempo.
Não florescem no inverno os arvoredos,
Nem pela primavera
Têm branco frio os campos.
À noite, que entra, não pertence, Lídia,
O mesmo ardor que o dia nos pedia.
Com mais sossego amemos
A nossa incerta vida.
À lareira, cansados não da obra
Mas porque a hora é a hora dos cansaços,
Não puxemos a voz
Acima de um segredo,
E casuais, interrompidas, sejam
Nossas palavras de reminiscência
(Não para mais nos serve
A negra ida do Sol) —
Pouco a pouco o passado recordemos
E as histórias contadas no passado
Agora duas vezes
Histórias, que nos falem
Das flores que na nossa infância ida
Com outra consciência nós colhíamos
E sob uma outra espécie
De olhar lançado ao mundo.
E assim, Lídia, à lareira, como estando,
Deuses lares, ali na eternidade,
Como quem compõe roupas
O outrora componhamos
Nesse desassossego que o descanso
Nos traz às vidas quando só pensamos
Naquilo que já fomos,
E há só noite lá fora.
~~
30 - 7 - 1914
Ricardo Reis
In Poesia , Assírio & Alvim, ed. Manuela Parreira da Silva, 2000

[Não tenhas nada nas mãos]

Não tenhas nada nas mãos
Nem uma memória na alma,
Que quando te puserem
Nas mãos o óbolo último,
Ao abrirem-te as mãos
Nada te cairá.
Que trono te querem dar
Que Átropos to não tire?
Que louros que não fanem
Nos arbítrios de Minos?
Que horas que te não tornem
Da estatura da sombra
Que serás quando fores
Na noite e ao fim da estrada.
Colhe as flores mas larga-as,
Das mãos mal as olhaste.
Senta-te ao sol. Abdica
E sê rei de ti próprio.
~~
19 - 6 - 1914
Ricardo Reis
In Poesia , Assírio & Alvim, ed. Manuela Parreira da Silva, 2000
Van Gogh. A Sesta.

Aniversário de nascimento de Ricardo Reis

SEGUNDO FERNANDO PESSOA, QUE LHE TRAÇOU A “VIDA” E A “OBRA”, OCORREU A 19 DE SETEMBRO DE 1888 (UM ANO ANTES DO NASCIMENTO DO SEU CRIADOR!…)
................................................................................................................................
Na sua Carta a Adolfo Casais Monteiro - 13 Jan. 1935, Pessoa, ao explicar a origem do “heteronimismo”, diz que “aí por 1912, salvo erro (que nunca pode ser grande), veio-me à ideia escrever uns poemas de índole pagã.” […] “Esbocei umas coisas em verso irregular (não no estilo Álvaro de Campos, mas num estilo de meia regularidade), e abandonei o caso. Esboçara-se-me, contudo, numa penumbra mal urdida, um vago retrato da pessoa que estava a fazer aquilo. (Tinha nascido, sem que eu soubesse, o Ricardo Reis)”[…]
“Num dia em que finalmente desistira — foi em 8 de Março de 1914 — acerquei-me de uma cómoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim.” 
“Aparecido Alberto Caeiro, tratei logo de lhe descobrir — instintiva e subconscientemente — uns discípulos. Arranquei do seu falso paganismo o Ricardo Reis latente, descobri-lhe o nome, e ajustei-o a si mesmo, porque nessa altura já o via. “[…]
“Eu vejo diante de mim, no espaço incolor mas real do sonho, as caras, os gestos de Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos. Construi-lhes as idades e as vidas. Ricardo Reis nasceu em 1887 (não me lembro do dia e mês, mas tenho-os algures), no Porto, é médico e está presentemente no Brasil.” […]

“Caeiro era de estatura média, e, embora realmente frágil (morreu tuberculoso), não parecia tão frágil como era. Ricardo Reis é um pouco, mas muito pouco, mais baixo, mais forte, mas seco. “[…]
“Ricardo Reis, educado num colégio de jesuítas, é, como disse, médico; vive no Brasil desde 1919, pois se expatriou espontaneamente por ser monárquico. É um latinista por educação alheia, e um semi-helenista por educação própria.”[…]
“Como escrevo em nome desses três?... Caeiro por pura e inesperada inspiração, sem saber ou sequer calcular que iria escrever. Ricardo Reis, depois de uma deliberação abstracta, que subitamente se concretiza numa ode.” […]
“O difícil para mim é escrever a prosa de Reis — ainda inédita”[…]

~
Fernando Pessoa
Da “ Carta a Adolfo Casais Monteiro - 13 Jan. 1935”.
In Cartas. Fernando Pessoa. (Richard Zenith, ed.) Lisboa, . Lisboa: Assírio & Alvim, 2001
Imagem: Carta astrológica de Ricardo Reis, traçada por Fernando Pessoa.

domingo, 18 de setembro de 2016

Soneto de Amor - José Régio

Não me peças palavras, nem baladas,
Nem expressões, nem alma... Abre-me o seio,
Deixa cair as pálpebras pesadas,
E entre os seios me apertes sem receio.
Na tua boca sob a minha, ao meio,
Nossas línguas se busquem, desvairadas...
E que os meus flancos nus vibrem no enleio
Das tuas pernas ágeis e delgadas.
E em duas bocas uma língua..., — unidos,
Nós trocaremos beijos e gemidos,
Sentindo o nosso sangue misturar-se.
Depois... — abre os teus olhos, minha amada!
Enterra-os bem nos meus; não digas nada...
Deixa a Vida exprimir-se sem disfarce!
~~
José Régio
In “Antologia Pessoal da Poesia Portuguesa, Eugénio de Andrade”

Zhao Chun

Litania Heroica - José Régio

Entrem, entrem os ventos, os chuveiros, as estrelas,
No palácio inabitado
Sem telhado, sem vidraças nas janelas…
Que os vidros me estalaram,
O telhado me voou,
E, pelos mil caminhos que ante mim se desdobraram,
Os meus passos me levaram,
E eu lá vou (nem sei se vou…)!

Sem preferir, sem definir, sem restringir, avanço
De renúncia em renúncia, luta em luta.
Não sou para ter descanso,
Não para ser redimido…

Também não sou para vencer ou ser vencido.
Lutei e luto, e lutarei…
De Nenhum–Reino é que sou rei!

Também não sou para dormir nas estalagens.
Venho de trás, vou para a frente…
Como bastar-me o presente?
Lucidamente delirante, o meu olhar é um rastro ardente
Incendiando todas as paisagens…

Por tudo isto sou profundamente só,
E me debato na insanidade,
E nada sei ver só dum lado,
Porque, pairando em tudo como a luz ou como o pó,
Transbordo de humanidade,
Vivo desumanizado….

Vivo na heroica Tortura,
E viva a magna Aventura!
Minha Grandeza é sem cura…,
Renego a felicidade.

Entrem, entrem, os ventos, os chuveiros, as estrelas,
No palácio inabitado
Sem telhado, sem vidraças nas janelas…

Entrem as aves noturnas,
Os animais sem dono, as feras brutais,
Os fantasmas peregrinos,
E os  lunáticos, os párias, os ladrões, os assassinos,
Que têm olhos como furnas,
Bocas mudas como grutas…

Tudo em que mais vasto for,
(Sei-o! bem n-o sei, Senhor!)
Pagá-lo-ei demasiado caro.

Faça-se, pois, em mim toda a vossa Vontade,
Emudeça em meu lábio o vão reparo…

Em mim se cumpra a vossa Imensidade!

…E a vida me persiga
Com as misérias mais subtis e menos gloriosas,
As decepções mais insólitas,
Humilhações mais recônditas
E raras
Para que enfim se extinga em mim a veleidade
De também ir atrás de nem sei que felicidade…


Entrem, entrem, os ventos, os chuveiros, as estrelas,
No palácio inabitado
Sem telhado, sem vidraças nas janelas…

E de misérias, decepções, humilhações,
E apelos de velhos vícios,
E virtudes ignoradas,
Farei látegos! cilícios
Para me modelar às chicotadas!

Assim me pare, nem descanse,
Seja em que lar ou seja em que deserto.
Sem proferir nada a nada,
Fugindo sempre da estrada,
De contínuo avance!
Avance, sempre mais longe e mais perto…

Porque não é em mim que me sonhei viver!
Meu ser-eu só me aperta, e só sonho esmagá-lo.
Livre, sou tudo que é, foi, há-de ser,
Vivo em tudo que vive, há-de viver, viveu…

E então, quando eu disser «eu…»,
Já direi: «Não! não é de mim que falo!»

Entrem, entrem, os ventos, os chuveiros, as estrelas,
No palácio inabitado
Sem telhado, sem vidraças nas janelas…

~
José Régio

José Régio: - [Que o nada do meu nada é que me é tudo!]

“Que o nada do meu nada é que me é tudo!:
Os prantos que chorei valem o oceano.
De cada cicatriz, fiz, faço o escudo
Por trás do qual de nada ver me ufano.
E os gritos que no peito opresso e mudo
Trouxe opressos e mudos de ano em ano
Nem me deixam, sequer, poder ouvir
Os pássaros cantar e as fontes rir…”

~
José Régio

De “Sarça Ardente”, in “As Encruzilhadas de Deus”, Portugália Editora
José Régio por João Abel Manta

José Regio - efeméride

JOSÉ RÉGIO [n. Vila do Conde, 17-9-1901 - m. Vila do Conde, 22-12-1969]

CÂNTICO NEGRO
«Vem por aqui» — dizem-me alguns com olhos doces, 
Estendendo-me os braços, e seguros 
De que seria bom que eu os ouvisse 
Quando me dizem: «vem por aqui»! 
Eu olho-os com olhos lassos, 
(Há, nos meus olhos, ironias e cansaços) 
E cruzo os braços, 
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta: 
Criar desumanidade! 
Não acompanhar ninguém. 
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade 
Com que rasgueí o ventre a minha Mãe.

Não, não vou por aí! Só vou por onde 
Me levam meus próprios passos... 
Se ao que busco saber nenhum de vós responde, 
Porque me repetis: «vem por aqui»? 
Prefiro escorregar nos becos lamacentos, 
Redemoinhar aos ventos, 
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos, 
A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi 
Só para desflorar florestas virgens, 
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada! 
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós 
Que me dareis impulsos, ferramentas, e coragem 
Para eu derrubar os meus obstáculos?... 
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós, 
E vós amais o que é fácil! 
Eu amo o Longe e a Miragem, 
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! tendes estradas, 
Tendes jardins, tendes canteiros, 
Tendes pátrias, tendes tectos, 
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios. 
Eu tenho a minha Loucura! 
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura, 
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém. 
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe; 
Mas eu, que nunca principio nem acabo, 
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções! 
Ninguém me peça definições! 
Ninguém me diga: «vem por aqui»! 
A minha vida é um vendaval que se soltou. 
É uma onda que se alevantou. 
É um átomo a mais que se animou... 
Não sei por onde vou, 
Não sei para onde vou, 
— Sei que não vou por aí!

~
José Régio
In Poesia I - Obra completa , Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2001
José Régio [N. Vila do Conde,17-9-1901 — m. Vila do Conde, 22-12-1969] foi uma das maiores figuras literárias portuguesas do séc. XX. De seu nome verdadeiro, José Maria dos Reis Pereira, destacou-se como ficcionista, dramaturgo, poeta, crítico, ensaísta, diarista e memorialista. A sua tese de licenciatura intitulada, ‘As Correntes e as Individualidades na Moderna Poesia Portuguesa’, foi, mais tarde, reeditada com pequenas alterações, com o título de ‘Pequena História da Moderna Poesia Portuguesa’ (1941). Lançou, em Coimbra, a influente revista ‘Presença’, que dirigiu, juntamente com João Gaspar Simões e, depois, Adolfo Casais Monteiro. Esta foi uma revista marcante na cultura portuguesa, que fez, publicamente, “uma eloquente crítica e apologia da obra de Fernando Pessoa, Mário de Sá Carneiro, Almada Negreiros e António Botto, entre outros, solidificando, perante um público gradualmente menos relutante, reputações que são hoje valores assentes do nosso património cultural. Por outro lado, a Presença revelará valores novos e proporá outros deuses tutelares, que o Primeiro Modernismo ou desconhecera ou achara de somenos inculcar: Freud, Dostoievsky, Proust, Bergson, Gide (este com alguma crescente relutância pela parte de Régio...). Em Coimbra, faz ainda a sua estreia como poeta, com os hoje célebres Poemas de Deus e do Diabo (1925), logo saudados por alguns grandes nomes como um indiscutível clássico da poesia português”
Professor de liceu no Porto e, depois, em Portalegre, onde residiu durante mais de trinta anos, José Régio acabou por dividir parte da sua vida de aposentado no Alentejo e em Vila do Conde, sua terra natal, onde viria a morrer.
“Quando se fala de José Régio, pensa-se em geral no poeta esquecendo-se o ficcionista que foi, empenhadamente, ao longo de toda a sua vida, com obras tão assinaláveis e mesmo notáveis como são o ‘Jogo da Cabra Cega’ (1934) ou as admiráveis ‘Histórias de Mulheres’ (1946), sem esquecer esse romance poético e profundamente embrenhado na temática mais funda e obsessiva do seu autor que é ‘O Príncipe com Orelhas de Burro’ (1942) ou a soma romanesca ‘A Velha Casa’, de que deixou completos cinco volumes e o começo de um sexto”
“Igualmente importantes são as facetas do dramaturgo, dos mais impressionantes da história do nosso teatro (desde ‘Jacob e o Anjo’, 1940, passando por ‘Benilde ou a Virgem-Mãe’, 1947, ‘El-rei Sebastião’, 1949). Nestas peças retoma temas de sempre, tais o da morte e ressurreição (em seu valor simbólico), o sofrimento como valor de redenção, a autossuperação pela lenta aceitação - com sofrimento - de valores mais altos a que, apesar de tudo, se resiste.”
 José Régio “deixa-nos um exemplo notabilíssimo de integridade artística e humana, de coragem criadora e cívica, de um percurso simultaneamente autónomo e integrado, a par de um exemplo não menos irradiante de inteligência crítica a um tempo cautelosa e finalmente perscrutadora, que ficarão como a melhor garantia da autenticidade do seu amor a uma literatura que profundamente conheceu e acrescentou.” Fonte: Dicionário Cronológico de Autores Portugueses, vol. IV, Março de 1998.