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domingo, 18 de setembro de 2016

José Regio - efeméride

JOSÉ RÉGIO [n. Vila do Conde, 17-9-1901 - m. Vila do Conde, 22-12-1969]

CÂNTICO NEGRO
«Vem por aqui» — dizem-me alguns com olhos doces, 
Estendendo-me os braços, e seguros 
De que seria bom que eu os ouvisse 
Quando me dizem: «vem por aqui»! 
Eu olho-os com olhos lassos, 
(Há, nos meus olhos, ironias e cansaços) 
E cruzo os braços, 
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta: 
Criar desumanidade! 
Não acompanhar ninguém. 
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade 
Com que rasgueí o ventre a minha Mãe.

Não, não vou por aí! Só vou por onde 
Me levam meus próprios passos... 
Se ao que busco saber nenhum de vós responde, 
Porque me repetis: «vem por aqui»? 
Prefiro escorregar nos becos lamacentos, 
Redemoinhar aos ventos, 
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos, 
A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi 
Só para desflorar florestas virgens, 
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada! 
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós 
Que me dareis impulsos, ferramentas, e coragem 
Para eu derrubar os meus obstáculos?... 
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós, 
E vós amais o que é fácil! 
Eu amo o Longe e a Miragem, 
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! tendes estradas, 
Tendes jardins, tendes canteiros, 
Tendes pátrias, tendes tectos, 
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios. 
Eu tenho a minha Loucura! 
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura, 
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém. 
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe; 
Mas eu, que nunca principio nem acabo, 
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções! 
Ninguém me peça definições! 
Ninguém me diga: «vem por aqui»! 
A minha vida é um vendaval que se soltou. 
É uma onda que se alevantou. 
É um átomo a mais que se animou... 
Não sei por onde vou, 
Não sei para onde vou, 
— Sei que não vou por aí!

~
José Régio
In Poesia I - Obra completa , Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2001
José Régio [N. Vila do Conde,17-9-1901 — m. Vila do Conde, 22-12-1969] foi uma das maiores figuras literárias portuguesas do séc. XX. De seu nome verdadeiro, José Maria dos Reis Pereira, destacou-se como ficcionista, dramaturgo, poeta, crítico, ensaísta, diarista e memorialista. A sua tese de licenciatura intitulada, ‘As Correntes e as Individualidades na Moderna Poesia Portuguesa’, foi, mais tarde, reeditada com pequenas alterações, com o título de ‘Pequena História da Moderna Poesia Portuguesa’ (1941). Lançou, em Coimbra, a influente revista ‘Presença’, que dirigiu, juntamente com João Gaspar Simões e, depois, Adolfo Casais Monteiro. Esta foi uma revista marcante na cultura portuguesa, que fez, publicamente, “uma eloquente crítica e apologia da obra de Fernando Pessoa, Mário de Sá Carneiro, Almada Negreiros e António Botto, entre outros, solidificando, perante um público gradualmente menos relutante, reputações que são hoje valores assentes do nosso património cultural. Por outro lado, a Presença revelará valores novos e proporá outros deuses tutelares, que o Primeiro Modernismo ou desconhecera ou achara de somenos inculcar: Freud, Dostoievsky, Proust, Bergson, Gide (este com alguma crescente relutância pela parte de Régio...). Em Coimbra, faz ainda a sua estreia como poeta, com os hoje célebres Poemas de Deus e do Diabo (1925), logo saudados por alguns grandes nomes como um indiscutível clássico da poesia português”
Professor de liceu no Porto e, depois, em Portalegre, onde residiu durante mais de trinta anos, José Régio acabou por dividir parte da sua vida de aposentado no Alentejo e em Vila do Conde, sua terra natal, onde viria a morrer.
“Quando se fala de José Régio, pensa-se em geral no poeta esquecendo-se o ficcionista que foi, empenhadamente, ao longo de toda a sua vida, com obras tão assinaláveis e mesmo notáveis como são o ‘Jogo da Cabra Cega’ (1934) ou as admiráveis ‘Histórias de Mulheres’ (1946), sem esquecer esse romance poético e profundamente embrenhado na temática mais funda e obsessiva do seu autor que é ‘O Príncipe com Orelhas de Burro’ (1942) ou a soma romanesca ‘A Velha Casa’, de que deixou completos cinco volumes e o começo de um sexto”
“Igualmente importantes são as facetas do dramaturgo, dos mais impressionantes da história do nosso teatro (desde ‘Jacob e o Anjo’, 1940, passando por ‘Benilde ou a Virgem-Mãe’, 1947, ‘El-rei Sebastião’, 1949). Nestas peças retoma temas de sempre, tais o da morte e ressurreição (em seu valor simbólico), o sofrimento como valor de redenção, a autossuperação pela lenta aceitação - com sofrimento - de valores mais altos a que, apesar de tudo, se resiste.”
 José Régio “deixa-nos um exemplo notabilíssimo de integridade artística e humana, de coragem criadora e cívica, de um percurso simultaneamente autónomo e integrado, a par de um exemplo não menos irradiante de inteligência crítica a um tempo cautelosa e finalmente perscrutadora, que ficarão como a melhor garantia da autenticidade do seu amor a uma literatura que profundamente conheceu e acrescentou.” Fonte: Dicionário Cronológico de Autores Portugueses, vol. IV, Março de 1998.



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